O tema aqui é o denominado ‘trote’, entendido por alguns como parte da comemoração da conquista do jovem por uma vaga universitária, uma espécie de rito de passagem que está atualmente integrado à cultura do Brasil. Tema controverso, por todo ano na época do resultado dos vestibulares o evento alimenta a mídia com um rosário de grandes tolices conduzidas por diretrizes do que há de mais baixo na natureza humana, baseado numa espécie de humilhação do candidato vitorioso no qual o humilhado de ontem se vinga da humilhação do trote anterior.
Não se trata de querer produzir um discurso moralista, mas antes apelar para o bom senso.Primeiro ponto: a conquista de uma vaga na universidade deve ser comemorada? É claro que sim, o problema é qual a natureza da comemoração: Exercício da estupidez alheia? Aprender a vivenciar situação de tortura? Ser submetido a ato de humilhação? Ser ameaçado ou perseguido? Ou sei lá o que vai na cabeça de infelizes que capturam calouros e os submetem às vexações.
A princípio parece caso para ser tratado por psicólogos, mas geralmente acabam mesmo como casos de polícia, onde esta cumpre o seu papel, mas a justiça efetivamente não produz punição adequada para pessoas que atuam como trogloditas contra outras que são destratadas por terem conquistado uma vitória. Há várias maneiras de se comemorar, uns parecem que apreciam os porcos, assim riem felizes ao fazer os outros chafurdarem na lama. Outros, com sexualidade mal resolvida, aproveitam o momento para cometerem grotescos assédios.
É como se por alguma a razão o código de proteção civil da pessoa de hora para outra fosse suspenso em benefício desta tradição, onde a elite estudantil se comporta como um bando de abobalhados. Seria de se questionar o porquê de comemorar uma conquista intelectual e social com festividade tão chucra. Afinal, a vida universitária é a busca do aprimoramento maior na educação, no entanto, o que se verificam são cenas típicas das fases de pré-educação.
Saldo da festa deste ano: Barretos, 7 queimaduras químicas provocadas por creolina; em Mogi das Cruzes a selvageria consistiu em obrigar os calouros de medicina a beijarem um fígado de boi e ficar diante de uma cruz para serem atingidos por ovos e catchup, além de levarem tapas e cusparadas. Por lá, em 1980 um foi morto a socos e pontapés ao resistir ao corte de cabelo. Em Fernandópolis, oito alunos veteranos obrigaram um calouro a beber álcool combustível, além de passarem veneno de carrapato no corpo de calouros. Na Universidade Federal do Paraná teve o tal banho de lama; em Taubaté os veteranos teriam cuspido no rosto dos calouros e submetido os alunos a constrangimento sexual. Algumas vítimas disseram terem sido obrigadas a dirigir em alta velocidade na Via Dutra e a comer pimenta, sal com alho e ração de cachorro; outros teriam passado por sessões de depilação do corpo e sido obrigados a ficar horas ajoelhados no asfalto quente. Enfim, eis algumas das atitudes daqueles que fazem parte dos cursos superiores. Não me lembro de animais irracionais produzindo façanhas iguais. Eis no que deram as bobagens dos anos 70, quando a moda era pintar e fazer os calouros matarem formigas a grito. Deve ser a Lei de Murphy, afinal sempre pode piorar.
Longe do ritual troglodita, a UNICAMP dá exemplo: os calouros são levados a atividades como plantio de árvores e hortas, construção de lixeiras com material reciclado e jogos interativos, beneficiando entidades de Campinas. Mais do que isto, os organizadores do trote organizam um simpósio sobre sustentabilidade e aquecimento global e o dia da caneca, em que distribuem canecas aos alunos para que eles não utilizem copos descartáveis no restaurante universitário. A ideia é transformar o calouro de hoje em bom anfitrião no ano que vem, hoje ser bem recebido para receber bem no futuro, uma luz de civilidade em meio às trevas da imbecilidade. Ou seja, que se faça um rito de transição, que o nome seja trote, mas se caracterize pela solidariedade que constrói a cidadania, e não a violência que apenas surpreende por ver até onde pode chegar a estupidez.
Gilberto Brandão Marcon
Professor e Pesquisador da UNIFAE, Ex-Presidente do IPEFAE (2007/2009), Economista graduado pela UNICAMP (1982/1985), pós-graduado ‘lato sensu’ em Economia de Empresas pela FAE (1986/1988), com Mestrado Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação pela UNIMARCO (2006/2008), Comentarista Econômico TV União, Escritor, e com aperfeiçoamento como aluno especial no Mestrado de Filosofia da UNICAMP na área de Filosofia da Psicanálise (2002/2003).