A COLONIAL DIAMANTINA. De Chica da Silva ao “Peixe Vivo”

                                         Sérgio Martins PANDOLFO*

   "O Caminho do Ouro foi trajeto forjado por bravos, gente de fibra ou de ganância que trouxe para si a responsabilidade de cruzar quilômetros em lombo de burro, levando o ouro brasileiro até a saída para o mar, em Paraty, no Rio de Janeiro."
                                   in Praia e Montanha, nº. 30.


          A colonial Diamantina, alçada a Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, teve seu início histórico no primevo Arraial do Tijuco, criado pela Coroa portuguesa para abrigar as famílias nobres cujos líderes comandavam escravos e tropeiros na continuada e estafante busca do ouro. Com o achamento de diamantes na região o povoado cresceu e fez-se próspero. Os registros históricos apontam o ano de 1734 como o da criação da intendência dos diamantes e de transformação do Arraial do Tijuco em centro político-administrativo do distrito diamantino, dando nascimento a uma verdadeira cidade, com construções de palácios e casas senhoriais e febricitante vida profana, elevado à categoria de vila em 1770 e transformado na cidade de Diamantina em 1838. Uma história de aventuras, heroísmo, riquezas, amores, ganâncias, mas, sobretudo, uma sequência histórica de fatos e de gentes que transformaram Diamantina numa das mais belas e ricas cidades brasileiras, herança patrimonial da colonização portuguesa de valor inestimável e em muito bom estado de preservação, que merece ser conhecida pelos brasileiros.
          Já tivemos oportunidade de referir, nas páginas doutros escritos, o inestimável patrimônio que nos foi legado por nossos descobridores e colonizadores, mas sempre convém ressaltar que esse cabedal está representado, desde o vasto território sob nossa soberania, a língua lusa, que Camões exalçou, hoje uma das mais importantes e difundidas no mundo, a índole pacífica do brasileiro, a extraordinária e superior mescla trirracial que nos distingue e orgulhece, hábitos e costumes e um dos maiores, importantes e ricos patrimônios arquitetônicos da era colonial, que vai desde prédios isolados e únicos, passa por conjuntos originais de nossas principais cidades, tais como os chamados Centros Históricos (de Salvador, São Luis, Rio de Janeiro, Belém – a nossa distinta Cidade Velha) e chega mesmo a incluir cidades inteiras, como é o caso, só para pôr exemplos, de Ouro Preto e Diamantina, de que ora nos ocupamos. São legados que, sobre muito nos orgulhar, ainda nos enseja, hoje, um avultado filão turístico, pelas preciosidades, em alguns aspectos únicas, responsável por elevada receita financeira daí advinda.
          Diamantina era o ponto inicial da chamada Estrada Real, percorrida por tropeiros, aventureiros e volantes de fiscalização e taxação de impostos incidentes sobre os minerais encontrados à farta, naqueles recuados tempos, em várias cidades das Minas Gerais, dentre as quais sobressaía a de Vila Rica, hoje Ouro Preto. Esse trajeto, que está atualmente sendo objeto de um plano de reavivamento, com vista ao incremento turístico, era feito a fim de levar o ouro e pedras preciosas primitivamente ao porto da cidade de Paraty (RJ), o chamado Caminho Velho, e posteriormente às instalações portuárias do Rio de Janeiro, já então sede da colônia, o que permitia um melhor controle e inspeção, que passou a ser conhecido como o Caminho Novo.
          Foi lá, na trissecular Diamantina, que se desenvolveu o romance amoroso efervescente de Chica da Silva, uma escrava negra por quem o português João Fernandes de Oliveira, contratador de ouro, se apaixonou perdidamente, fazendo-a rainha do Tijuco, fato narrado em livros, fascículos de cordel e levado às telas de cinema e TV. Desse romance subsistem na cidade ricas reminiscências históricas sob a forma de edificações civis e religiosas, espalhadas pela cidade.
          Tudo em Diamantina está muito bem preservado e é motivo de orgulho para seus habitantes, conscientes e ufanos desse tesouro que não tem preço: o casario, o calçamento em pedra, os variados estilos arquitetônicos de épocas diversas e povos de costumes diferenciados que por lá passaram, as muitas igrejas, feitas com o emprego de materiais de construções originais, os museus, as fontes, que nos fazem voltar no tempo e imaginar a vida citadina daquela gente, com seus hábitos e costumes tão diferentes dos dias de hoje.
          Tivemos oportunidade de conhecer a cidade em novembro de 2005, como esticada de lazer e curiosidade histórica, após um congresso cultural em Belo Horizonte. Diamantina foi berço, também, de um dos brasileiros mais ilustres e cultuados de todos os tempos, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e em sua memória estão conservados na cidade inúmeros prédios, hoje duplamente históricos, como a casa em que nasceu, a outra em que morou com sua mãe enquanto lá viveu, o seminário em que estudou e alguns monumentos que em seu honor foram erigidos. A praça que abriga o histórico Mercado Municipal hoje leva seu nome e a casa onde residiu com sua mãe é atualmente um museu de seus objetos pessoais, domésticos e atividade médica e uma biblioteca municipal.
          Alguns pontos de um roteiro turístico pelas ruas e vielas de Diamantina são obrigatórios, imperdíveis (como se diz hoje) e evocativos daqueles alonjados dias de glória e esplendor, como a Casa de Chica da Silva, a Capela de N.Srª. da Consolação, o Museu do Diamante. A Igreja de N.Srª. do Carmo, imponente e suntuosa, entalhada em ouro pela artesania dos mestres Francisco Antônio Lisboa e Manuel Pinto, tem em seu interior um órgão também trabalhado em ouro e teve sua construção, financiada por João Fernandes, encerrada em 1765. A Casa de Chica da Silva, sem ponta de dúvida, é a que atrai maior número de curiosos turistas, dada a difusão do tórrido e voluptuoso romance vivido pelo contratador com a escrava negra, feita sua amante e preferida, que os guias se esmeram em particularizar, entre os anos de 1755 a 1770. È uma mansão típica das residências coloniais mineiras.
          Outra curiosa atração é a Casa de Muxarabiê, que deve seu nome à conservação de sua sacada original com treliça de madeira, de origem mourisca, que leva essa denominação. Esse tipo de balcão projetado permitia às mulheres ampla visão das ruas sem que fossem notadas, sinal de uma época conservadora e marcante dos costumes do século XVIII. Não se pode deixar de visitar também a Casa com Forro Pintado, em que residia o intendente da câmara, assim como o prédio da prefeitura, antiga Casa da Intendência, erguida pela Coroa (1733-1735) para abrigar a administração das jazidas. O Museu do Diamante, edificação do 18º século, foi residência do Pe. José de Oliveira e Silva Rolim, um dos mais ativos inconfidentes. O acervo desse museu é deveras expressivo e representativo da atividade extrativa e comercial dos diamantes, ademais de móveis, arte sacra, armaria, numismática e utensílios da época.
          O Mercado Municipal é outra construção-símbolo da cidade. Arquitetado inteiramente em madeira, suas peças se articulam por meio de encaixes, cravos do mesmo material e amarrilhos com cipós. Nesse edifício, onde atualmente se comercia “de um tudo”, no dizer parauara, em seus primórdios eram também expostos, para compra e venda, animais de tração, condução e alimentação, além de escravos. O Passadiço da Glória, uma construção fantástica e verdadeiro sinal de seu tempo, liga duas edificações, dos séculos XVIII e XIX, referências européias dos habitantes do Arraial e emblemático da rígida moral vigente na época, permitia o trânsito das irmãs (religiosas) sem serem notadas.
          Terra de grandes personalidades e mitos da História brasileira, Diamantina gosta de cultuar seus filhos ilustres: a Escola Estadual “Júlia Kubitschek”, em contraste com o estilo colonial que caracteriza e domina a cidade, foi erguida com as linhas da modernidade de Oscar Niemayer.
          Mas rotundamente se equivoca quem pensa ser Diamantina apenas o conglomerado de um casario obsoleto, descolorido, desativado, a suspirar, saudosista, por um passado viçoso e buliçoso. Ao revés, seu Centro Histórico, totalmente restaurado à fiel originalidade, abriga, e condignamente, mansões de ricos senhores, hotéis, pousadas, pensões, restaurantes, lojas de artesanato e de suvenir, bancos, joalherias, mobiliarias e toda a complexidade comercial de uma moderna cidade, ademais de sediar vários cursos acadêmicos da Universidade mineira, cujos alunos, misturados aos muito turistas sempre presentes, dão às ruas o bulício e o viço da mocidade e de atualidade.
          Diamantina é também terra em que se cultivam hábitos e tradições que lhe são caros e característicos, como a música, que é ouvida o ano inteiro, executada por conjuntos musicais de qualidade e bom gosto que tocam o fino do jazz, bolero, bossa-nova, samba, chorinho e, principalmente, as famosíssimas Serenatas, que Nonô (terno apelido de infância de JK) a gosto pleno apreciava e delas participava, tanto que a canção “Peixe Vivo” hoje quase que se confunde com o sorriso, a simpatia e a imensa saudade que sentimos desse diamantino que tirou o Brasil da modorra e do obscurantismo, fazendo-o respirar os ares da modernização, progresso e avanço econômico, tecnológico e social.
          A cidade oferece ainda roteiros de aventuras em trilhas ecológicas que levam a cachoeiras, como a da Sentinela, grutas como a do Salitre e áreas para a prática de esportes radicais, pelos amantes da Natureza e pelos que querem reportar-se a um tempo, já bem distante, em que Diamantina era o ponto de partida da trilha do ouro e dos diamantes.

Nota: Na foto acima a  Casa da Glória, um passadiço de freiras.
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(*) Médico e Escritor –SOBRAMES/ABRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 09/03/2010
Reeditado em 14/10/2011
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