A “PESTE DO MAR” NA EPOPEIA CAMONIANA
 
                    Sérgio Martins Pandolfo*

“A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, embora ela deva ser vivida olhando para frente, isto é, para algo que não existe”
Sören Kierkegaard, filósofo

   Desde os primórdios das grandes navegações transoceânicas, com que os portugueses proeminaram e “deram novos mundos ao mundo”, dois problemas avultavam, ademais dos adstritos especificamente às artes náuticas: o da alimentação e o da assistência médica aos mareantes de todas as categorias. Como passavam meses viajando entre os portos de abastecimento e de destino, a questão ligada ao suprimento alimentar dos embarcados constituía-se em quesito de difícil resolubilidade, assim no concernente à comida propriamente dita, como também à água a ser consumida pelos tripulantes e viajores. A primeira era representada, quase sempre, por carnes e peixes salgados (sardinha e bacalhau, mormente); não se pescava no decurso da viagem, mesmo durante as calmarias, eis que se acreditava ser o alto-mar vazio de peixes; frutas somente secas ou em compotas (ameixas, pêssegos, maçã); nenhuma verdura ou legume eram levados. Bolachas duras e mofentas, os chamados “biscoitos do mar” (de bis = duas vezes e coctus = cozido, daí o nome), constituídas por maçaroca de farinha, sal e água, cozida nos fornos do reino para aquele fim específico.
     As condições precárias de higiene nessas embarcações, com notável proliferação de ratos, baratas, piolhos, pulgas, ácaros e outros agentes nocivos, muito contribuíam para a alta incidência de doenças e mortes dos embarcados. Nessas condições, as rações proteicas (carnes e peixes salgados) quase sempre se tornavam pútridas ao cabo de algum tempo e a água para beber, acondicionada em tonéis sem boa aeração e proteção, não demorava muito para tornar-se insalubre, impotável, pelo que grassavam verdadeiras “epidemias” de diarréia e de outras infecções (tuberculose, sífilis, escabiose <”curuba”>), além de desnutrição e estiolamento corpóreo. Todos tinham direito, também, a uma quota diária de vinho (que lhes aportava as calorias necessárias para o duro labor a bordo) e uma porção de mel.
     Entretanto, uma das moléstias mais temíveis e quase sempre infalível nas viagens de maior percurso e duração era, sem ponta de dúvida, o escorbuto, que chegava a constituir-se em verdadeiro flagelo das naus e caravelas e em uma das principais causas de morte desses heroicos pioneiros nautas daqueles recuados tempos. Bastaria por aduzir, em abonação, que na viagem empreendida por Vasco da Gama para descobrir o caminho das Índias Orientais houve morte de cerca de metade de seus homens, vitimados por esse mal.
     O escorbuto é uma doença nutricional causada pela carência do ácido ascórbico (vitamina C), polissintomática e de agravamento crescente após o esgotamento das reservas orgânicas dessa vitamina. Nos indivíduos bem alimentados e em perfeito estado de nutrição, o tempo de depleção das reservas corpóreas varia de um a três meses, podendo-se inferir que, naqueles navegadores, de baixo nível sócio-econômico e precárias condições higiênicas e de alimentação, a exaustão residual do nutriente ocorria em tempo bem mais diminuto. Qualquer viagem que ultrapassasse 45 a 60 dias, em mar alto, era um deus-nos-acuda e logo se apresentava o espectro mortífero da “peste do mar” (os portugueses referiam-na como "mal de Loanda"), temida e terrível para a marujada.
     Principia a enfermidade com fraqueza e estado depressivo, que se podem tornar extremos, chegando à letargia; mialgia (dor muscular) e artralgia (dor articular) logo aparecem. Hemorragias por todo o corpo (intra-articulares, intramusculares, subperiósticas, nas mucosas) se sucedem; amolecimento, inchaço e sangramento gengival, com necrose subsequente, são uma constante e dos mais expressivos sinais, assim como feridas na superfície corporal, ao mínimo traumatismo, que se expandem e não cicatrizam (grifamos), ditas úlceras escorbúticas; fraturas, até espontâneas, por osteoporose (rarefação da massa óssea). A anemia é subsecutiva às hemorragias e, também, à discrasia sanguínea pela não-formação dos glóbulos vermelhos (hemátias). Morte súbita pode ocorrer por hemorragias cerebrais ou miocárdicas, sendo condição potencialmente fatal. Tudo se deve a que a ausência do ácido ascórbico inibe a formação da substância fundamental e do colágeno, inviabilizando a agregação celular responsável pela formação e/ou reparação dos tecidos. Inexiste o “cimento” intercelular.
     Na viagem de Pedro Álvares Cabral, que resultou no “achamento” do Brasil, pode-se inferir da manifestação desse mal nas tripulações da frota pela interpretação das palavras escritas pelo físico (médico), astrônomo, astrólogo (à época uma ciência) e cosmógrafo João Faras, cirurgião-mor da corte de D. Manuel I, o Venturoso, ao seu rei e senhor, na chamada “Carta do Mestre João”, datada de 1º de maio de 1500, escrita de Vera Cruz e enviada a el-rei juntamente com a de Pero Vaz de Caminha, considerado o segundo documento mais importante sobre o nosso descobrimento (transcende-o, o manuscrito de Caminha), relatando, em trecho da missiva, que: "(....); eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão; (....)” (grifamos). Isso põe de manifesto, de forma cristalina, ululante, que ele próprio havia sido achacado pelo iníquo mal, haja vista a nítida parecença de sua lesão, que descreve para o rei, com o que se viu linhas atrás. E note-se que era ele homem de superior conhecimento e, certamente, de melhor nível nutricional e de higiene. Não cabe dúvida teve o Mestre que dispensar grandes cuidados, não só às suas próprias feridas como, por certo, às de dezenas (ou centenas?) de marinheiros nessa aludida expedição. Ressalte-se, ainda, que o tempo decorrido entre a saída da esquadra da Ribeira das Naus, na praia do Restelo, no então pequeno povoado de Belém, próximo de Lisboa, até chegar ao “porto seguro” da Coroa Vermelha, na Bahia, foram só 46 dias. È de se acreditar que, desembarcados na “terra brasilis”, os viajantes, durante a semana que por aqui se detiveram, devem se ter fartado, ou mesmo se empanturrado, com nossos frutos e outros comeres tropicais, o que lhes remuniciou de generosas reservas de vitamina C, suficientes para amenizar o trabalho do zeloso João Faras até a próxima parada, na costa oriental da África e finalmente em Calecute, na Ìndia.
     Mas é na inexcedível epopeia d’ Os Lusíadas, que Luis de Camões – gênio de máxima cerebração – legou à Humanidade, que se pode aquilatar, com o rigor da exatidão e da crueza, a que ponto chegavam os enfermiços de tão maligno morbo, descrito nas estrofes 81 e 82 do Canto V de seu opus magnum, abaixo transcritas. Estavam os argonautas na Baía de Sofala (Moçambique), na costa índica do Continente Negro, logo de dobrarem o Cabo das Tormentas (da Boa Esperança).

Os Lusíadas, V, LXXXI

E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que cre[s]cia
A carne e juntamente apodrecia?


Os Lusíadas, V, LXXXII

Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Sururgião su[b]til menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi[m] cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

     O escorbuto só veio a ter sua causa reconhecida cientificamente muitos anos depois, nas primícias do século recém-findo, porém, já pelo meado da centúria setecentista, o cirurgião-mor das esquadras do grande explorador marítimo inglês James Cook, considerado o primeiro dos navegadores científicos modernos, reconheceu a importância das frutas cítricas frescas, como o limão e a laranja, na prevenção e tratamento do escorbuto. Até essa comezinha descoberta, muitas “carnes apodrecidas” foram cortadas das gengivas da marinhagem e milhares de corpos “servidos ao mar-oceano”. Hoje, para felicidade nossa e glória da Medicina, essa doença, outrora aniquilante e funérea, é de incidência muito rara e facilmente tratável.

Nota: Acima retrato do imortal Luís de Camões na traça personalística de Rubem Franca, maior camonólogo vivo do País.

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(*) Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 31/12/2009
Reeditado em 29/08/2012
Código do texto: T2004770
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