HOMO SAPIENS? - Homo crudelis!

“Onde pode acolher-se um fraco humano,
onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o Céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?”
Camões, Os Lusíadas, I, 106-8


     Jacta-se o bicho-homem de ser a mais perfeita e inteligente criatura de Deus. Mais ainda: de ter sido feito à Sua imagem e semelhança. Será? A constatação de que macacos e seres humanos têm ancestralidade comum já o testificara Charles Darwin no final do séc. XIX, portanto... A fatuidade é tamanha que ele se autodenominou de Homo sapiens sapiens (homem inteligente, sábio) e crê ser o único animal provido de inteligência e raciocínio (o que, provado está, não corresponde à verdade). A observação atenta e ponderada de suas atitudes, de seu comportamento na sociedade que o cerca e em relação aos outros animais nos leva a fazer uma avaliação, se não oposta, pelo menos muito distante daquilo que proclama ou pensa ser, como já se verá.
     O bicho-homem é, sem ponta de dúvida, o maior predador da mãe Natureza, em todas as suas vertentes de vida, mas é certamente contra seus assemelhados do reino animal que ele costuma exibir, à plenitude, toda sua vileza e sadismo. Bastará por verificar cotidianamente na mídia, qualquer que seja o local em que estejamos, os crimes bárbaros, hediondos, os assaltos, sequestros, ações terroristas com a morte de inúmeros inocentes, para não falar nas guerras, ditas modernas e com “precisão cirúrgica”, em que são utilizadas armas de destruição maciça. “Quanto maior o poder das armas maior a pequenez da alma dos homens, macaco incapaz de se desvencilhar da síndrome das cavernas: matar para viver”, a redizer o jornalista José Maria Leal Paes. Já a sabedoria romana anatematizava essa faceta do ser humano no dito popular homo hominis lupo (o homem é o lobo do homem), tal a frieza com que se enfrentam e se matam.
     Em suas relações com os animais ditos inferiores, seja na simples convivência societária terrestre, seja na utilização de espécimes para experimentação científica, com objetivos de procriação, ou até mesmo no sacrifício de animais para sua alimentação e sobrevida, métodos cruéis, terrificantes, inadmissíveis, são a basto utilizados, pondo a descalvado toda a sanha de bestialidade e impiedade com o que muitas vezes até se comprazem e se deleitam, a ver: brigas de galos, de pássaros, de cães, quase sempre com a morte de um dos contendores e aleijões irreversíveis do outro; a cega de passarinhos canoros para que “cantem melhor”, o que agrava a tortura do engaiolamento; a forma como são procedidos os abates de animais para consumo (aves, gado) e a obtenção de sêmen de reprodutores para inseminação artificial (choque elétrico na região prostática); “corridas de touros” (em Pamplona, Espanha, v.g.) e a “farra do boi” em diversos países, inclusive no Brasil; as competições de rodeios; as touradas, com a morte cruel, inapelável dos animais, máxime tradicionalmente na Espanha, onde assume status de espetáculo nacional, mas também em Portugal e alguns outros países, contenda abominável, irracional, abjeta, em que o “herói” humano exibe, à magna feição, toda sua torpeza e covardia.
     Tivemos ocasião de assistir, constrangido, a espetáculos de touradas na Espanha e em Portugal, em “Praças de Touros” lotadas, inflamadas, arrebatadas ante a “coragem” dos toureiros e alguns outros através da TVE (Televisão Espanhola); pois a cada vez sentimos aumentada nossa indignação, aversão e repulsa por espetáculos de tamanha sordidez, torpeza e baixaria, que em muito se assemelham aos que eram oferecidos ao público romano pelos herodes e neros da época, pondo a lutar os cristãos contra os leões, a fim de agradá-lo e distraí-lo, mantendo o povo acomodado com a oferta de "panis et circensis" (pão e circo). Essa é a exata impressão que nos passa tais espetáculos, ademais da covardia e sorrateirice dos “artistas-mores”.
     Alegam ser a luta da força bruta contra a inteligência. Que inteligência é essa que se vale de artifícios para debilitar o valente e furioso animal, previamente acutilado e açulado com golpes nos testículos, fazendo-o dar várias voltas desenfreadas visando a alcançar um cavaleiro montado em cavalgadura para tal supertreinada, que o provoca e dele se esquiva em ziguezague, até ofegá-lo? Após várias tentativas infrutíferas e carreiras infrenes, com o desvalido touro já cansado e mais lento, mas furioso, começam as estocadas com as bandarilhas (uma espécie de espada) que exsanguentam o pobre animal, reduzindo ainda mais suas forças, mas não sua fúria, ainda perpetradas pelo “bravo” cavaleiro.
     Quando o bicho já perdeu bastante sangue e está com sua capacidade reacional e forças muito reduzidas é a hora de entrar em cena o “herói maior”, o toureiro, com sua indefectível capa vermelha, por ele agitada lateralmente a fim de atrair a atenção do enfraquecido touro, que ao investir contra ela perde mais forças e sangue. Chega-se então ao clímax do espetáculo (de triste figura) em que o “valiente” toureiro, valendo-se da quase inanição do dessangrado taurino, num rápido, sorrateiro (melhor seria dizer sórdido) e covarde gesto avança (sempre pela lateral, para evitar “acidentes”) e crava no pescoço do animal a bandarilha mortal que o faz cair ao chão e levantar a platéia extasiada pela “coragem e intrepidez” do “matador”, o qual, para a segura consecução de tão intimorato gesto tem a protegê-lo três ou quatro cavaleiros armados de lança e espadas.
     Olé!! Olé!! Gritam os assistentes em êxtase e o “manolito” sai em marcha triunfal, empertigado, arrogante, aclamado pela máxima coragem. O touro, já agonizante ou morto, sai da arena arrastado, puxado por cavaleiros, com a total indiferença e desdém da platéia, a configurar patético vilipêndio ao cadáver do bovino. Covardia, isto sim, e vilania extremas! Muito maior mérito e bravura via-se em D. Quixote de La Mancha (personagem criado pelo grande escritor Miguel de Cervantes), o “Cavaleiro da Triste Figura” que, montado em seu cavalo Rocinante, arremetia com sua armadura completa e lança em riste contra os moinhos de vento em defesa da dama objeto de seus platônicos amores.
     Em Portugal há já muitos anos está proibida a morte do animal na arena, diante do público. Esta só ocorrerá pouco depois, no matadouro do próprio estádio, o que não o exime da dor e perda de sangue que lhe causam muito sofrimento. No fim dá no mesmo.
Outro diferencial a referir nas touradas à portuguesa é a demonstração exibida pelos assim denominados “moços de forcados”, cujo distintivo é esse utensílio de lavoura (formado por um cabo de pau e terminado por duas – às vezes três – pontas de ferro) e que, antecedendo a exibição do toureiro principal “pegam o touro à unha”, incitando-o e lançando-se com destreza entre seus pontudos e agressivos chifres, agarrando-os com as mãos e, com vigorosos movimentos de inclinação lateral derrubam o animal no solo.  Esse é o único episódio, nas touradas, em que de fato vemos destemor, “sangue frio”, força e habilidade. A exibição dos ginetes montando corcéis de apurado adestramento que, com avanços e recuos elegantes escapam das investidas dos touros excitados, também pode oferecer alguma visão de inteligência e desempenho performático por não maltratar o animal. O resto é selvageria, deslealdade e covardia puras. Nada mais!
     É necessário que se promova uma reação de grande intensidade, através dos meios de comunicação e dos representantes do povo – que cada vez mais gosta menos desses espetáculos de primitivismo – a fim de banir, de uma vez por todas, com essas demonstrações de bárbarie. Em pleno evolver do século XXI, numa Europa que se proclama o continente mais civilizado do nosso rotundo planeta isso é intolerável, inadmissível. É um ritual que não pode subsistir. Urge que os ecologistas, os defensores dos direitos dos animais e os ativistas antitouradas se ponham em campo para sanar essa deformação do ser humano.
     Felizmente já se vislumbra uma tênue luz no fim do lúgubre túnel: pesquisa do Instituto Gallup mostrou que atualmente 72% dos espanhóis não têm mais nenhum interesse pelas touradas. Em 1971 a parcela de desinteressados era de apenas 43%. Espera-se que o bom senso rapidamente possa chegar à totalidade da população, a fim de pôr um ponto final nesse triste capítulo da crueldade humana. Já não é sem tempo.

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Médico e Escritor – SOBRAMES/ABRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 11/05/2009
Reeditado em 06/03/2012
Código do texto: T1588653
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