CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA

“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”
Cora Coralina, poetisa.



     Segundo Houaiss, cultura (do latim cultura, ae = ação de cuidar, tratar, venerar) é o cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social; é, também, o conjunto de padrões de comportamentos, crenças, conhecimentos, costumes, etc. que distinguem um agrupamento social. Fica patente, assim, que a cultura expressa o acervo de conhecimentos que se pode acumular, individual ou coletivamente.
     Frequente é ouvir-se dizer ser uma pessoa “muito culta”, quase sempre aí entendido que tal ser detém conhecimentos hauridos de escolaridade, as mais das vezes superior e, ademais, saberes outros variados ou multiformes, como por exemplo, o domínio de mais um ou dois (ou até mais) idiomas, além do descortino específico sobre um determinado campo do engenho humano, como Medicina, Direito, Letras, Artes, etc.
     Não se há de confundir cultura com educação. Conquanto sejam frequentemente havidas como similares ou correlatas são, na verdade, segmentos bem diversificados no que toca à intelectualidade, inobstante a estreita relação de causa e efeito que entretêm. Educação pressupõe o ato de ensinar, de instruir, de formar uma pessoa, seja ela criança ou adulto, feito por meio de professores, em escolas regularmente instaladas, em que pese o fato de, algumas vezes, serem os pais os primeiros mestres de alguém.
     È claro que todo o conhecimento auferido pela educação escolar, seja ela primária, secundária ou superior contribui, e muito, para o patrimônio cultural de um indivíduo, mas é preciso não esquecer que o mesmo nível de aquisição cultural alcançado por um escolarizado pode ser atingido, e até ultrapassado, por autodidatismo, isto é, por esforço e interesse próprio do indivíduo em se aculturar. Fica fácil entender, também, que quanto mais disseminada, eficiente e abrangente for à rede educacional de uma cidade, de um estado ou de um país, maior será, proporcionalmente, o nível de aculturação das gentes contempladas. O analfabetismo ou a educação escassa ou insubsistente estimagtizam a coletividade com a incultura ou ignorância, corolário da deseducação
     Taylor (1871) descreveu a cultura como “um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral, direito, costumes e todas as outras aptidões ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”. È, portanto, a cultura, a “herança social dos homens”, em oposição à herança genética, transmitida pela descendência familiar. O homem é um ser eminentemente gregário, e como tal, passível de absorver todas as manifestações culturais exibidas pela comunidade a que está ligado, seus saberes, fazeres, dizeres.
     A língua é uma das facetas mais identificadoras de uma coletividade, mas os diversos falares de uma mesma língua permitem que se possa diferençar, com precisão, habitantes de comunidades diversas, dentro de um mesmo estado ou de uma mesma nação, por exemplo. São também bastante significativas de uma sociedade cultural, a religião, a música, as danças e outras expressões artísticas. Há culturas que não têm escrita, são ágrafas ou iletradas, e a transmissão aí se faz exclusivamente pela oralidade, como é o caso de muitas tribos indígenas primitivas; as que se valem da escrita são ditas letradas ou civilizadas.
     O acervo intelectual e espiritual de um indivíduo ou de uma coletividade, bem como o comportamento social de um grupo humano está em geral regido pela forma como as pessoas se adaptam ao ambiente, em resposta às suas necessidades básicas. Esse acervo pode – e costuma ser, com frequência -- modificado ou enriquecido por conhecimentos distintos adquiridos no contacto com outros grupos. Os índios que habitavam o Brasil antes do descobrimento possuíam sua cultura própria, que foi profundamente alterada, diria melhor, mesclada à que lhes agregou o descobridor e colonizador português.
     A cultura popular engloba o conjunto de costumes e manifestações artísticas de uma comunidade, produzida pelos membros dos grupos que as compõem, que enfeixa, via de regra, a música, a dança, representações teatrais e a literatura, seja ela oral ou escrita. Aí estão manifestações tão nossas, como o carimbó (música e dança), a marujada, os “pássaros”, o boi, o bumba-meu-boi, as escolas de samba, originalmente compostas, dançadas e cantadas pelo povo de uma sociedade com as mesmas condições de vida e a refletir o seu próprio modo de ver o mundo.
     A cultura popular é comumente rotulada como folclore e pelo geral independe de educação. O extraordinário compositor Cartola, que nos deu preciosidades como “As rosas não falam”, não tinha sequer o curso primário, ao igual que o inspirado autor Cândido das Neves, o “Índio”, que produziu pérolas como “Noite cheia de estrelas” e era motorneiro da Central do Brasil. Estão aí, também, os Mestres Verequete, Cupijó e Lucindo, do carimbó parauara. Os repentistas do Nordeste, dentre os quais sobressai “Patativa do Assaré”, semianalfabeto e cego de nascença. A literatura de cordel, farta e generosamente produzida por autores integrantes das massas populares. As representações teatrais das pastorinhas, dos pássaros, e até as sessões esotéricas das benzições e ladainhas e o séquito das procissões; os folguedos infantis das rodas e cirandas, tudo isso compõe a chamada cultura popular ou folclore de uma sociedade.
     Diferente da cultura popular é a chamada cultura de massa, que é produzida em termos empresariais (estações de rádio, TV, jornais, cinema) e distribuída à população (às massas) pelos meios de comunicação. Por isso que melhor seria designá-la como indústria cultural. A cultura de massa tende a uniformizar as diversas expressões culturais populares, obtendo delas uma média ou um amálgama, a fim de que possa ser mais facilmente consumida por públicos heterogêneos, anulando aspectos genuínos e muitas vezes sociognomônicos de certas manifestações populares. Ademais, tende sempre a promover uma certa “elitização” ou padronização daquilo que é transmitido ou apresentado, passando a idéia de que o genuíno, o autenticamente popular é inferior, é de pior qualidade.
     Até o linguajar “da moda”, transmitido pelas cadeias de TV, de rádio e pela mídia impressa em geral, tende a tomar o lugar da fala comunal, autóctone de uma determinada região, acabando por sobrepor-se a esta, que passa a ser tida como inferior ou “demodée”. Nossas escolas de samba, hoje, imitam completamente as do Rio de Janeiro, tidas como “padrão”, e até a maneira de cantar o samba de enredo pelos chamados “puxadores-de-samba” é idêntica, quando não são os mesmos puxadores cariocas contratados a vir cantar em nossas escolas. Até sumiram com a figura regional da “sambista”, que nos era tão popular, querida e singular.

Na ilustração acima uma estilizada bandeira brasilo-parauara confeccionada com folhas de jambu, pimenta de cheiro, frutos do açaí, feijão da colônia e a estrela do Pará acima da faixa-dístico que normalmente leva o lema Ordem e Progresso
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(*) Médico e Escritor. SOBRAMES/ABRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 14/04/2009
Reeditado em 22/03/2012
Código do texto: T1538738
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