A MINHA FORMAÇÃO COMO CINÉFILO
Eu escutei a excelente live do jornalista cultural André Barcinski entrevistando a crítica de cinema e séries, e meme ambulante, Isabela Boscov. Eu recomendo o canal do YouTube do André Barcinski para todo mundo de bom gosto interessado em cultura fora do mainstream. Meu irmão assistiu à live antes de mim e disse que, mesmo sendo um neófito no assunto, ele se deleitou com a conversa pelo conhecimento dos dois no que diz respeito a cinema. Fico satisfeito comigo mesmo por ter conseguido acompanhar a conversa e conhecer todos os cineastas e filmes citados, embora alguns eu ainda não tenha tido a oportunidade de ver.
A Isabela citou sua idolatria por Kurosawa, como sua mãe a levava para assistir a filmes de Bergman, o dia em que cabulou aula para ver um filme pesadíssimo de Pasolini com somente 11 anos de idade, e como a Sessão da Coruja, que passava na televisão, exibia diversos filmes que hoje são considerados de arte, de cineastas como Godard, Wenders, Bertolucci. Eram outros tempos. E eles comentaram como antigamente até mesmo gente humilde e leiga em cinema ia até as telonas para assistir a grandes filmes que hoje são considerados clássicos.
Ouvindo a conversa e entendendo como se deu a cultura cinematográfica da Isabela, que sempre teve acesso a grandes filmes e contando com o capital cultural que herdou de sua família, eu penso na minha própria formação como cinéfilo e como ela é quase um milagre da natureza. Pela classe social em que nasci, não havia muitas chances de eu conhecer os cineastas e ter visto os filmes que já vi. Nem sei dizer como cheguei a ter acesso aos filmes de Woody Allen, Bergman e Godard. Mas lembro que, na 8ª série, eu já havia lembrado ao meu professor de história que o filme em que o homem joga xadrez com a morte chama-se O Sétimo Selo, ainda que eu não soubesse o nome do diretor.
Na verdade, eu minto ao dizer que minha formação como cinéfilo é um milagre, porque ela é muito condicionada pela influência musical que meu irmão exerceu em minha vida. Por influência dele, desde a mais tenra idade, eu estava escutando música fora do mainstream, com os discos que ele comprava. Eu ouvia muito indie rock, britpop, synthpop, música eletrônica. Meu irmão sempre escutou muito rádio e lia jornal, e o gosto musical dele foi influenciado pela Folha Teen, onde Álvaro Pereira Júnior e Lúcio Ribeiro escreviam sobre as novidades musicais, pela revista Bizz, e por programas de rádio como o Garagem, do qual faz parte o próprio André Barcinski. Era assim que se conhecia as novidades. E tinha a MTV. Lá tinham VJs meia boca, que estavam só pelo entretenimento, mas também gente que conhecia muita música, como Thunderbird, Fábio Massari e Gastão. Nos programas deles, se conhecia muita coisa nova e bacana.
Cresci influenciado por essa ética de ter que buscar informação sobre as coisas que eu queria escutar, de ir atrás da música, procurar, ler, estudar sobre o tema. Com o cinema, aconteceu que transportei essa ética de aprendizado, que eu usava para a música, para conhecer filmes e cineastas. Dessa forma, tive contato primeiro com o cinema americano, a Nova Hollywood. Comprei um livro sobre o tema e procurei assistir a todos os filmes dessa fase do cinema, que abrange o início dos anos 1969 com Bonnie & Clyde e Easy Rider, indo até o fim da década de 70. Eu, pessoalmente, considero essa a melhor década do cinema norte-americano. Do cinema americano, comecei a ter curiosidade sobre o cinema europeu.
Assim, conheci o cinema italiano de Fellini, o neorrealismo de Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, Bertolucci, Antonioni e sua trilogia existencialista densa, O Leopardo de Visconti, o western de Sergio Leone, que também fez o meu filme predileto de todos os tempos, que é Era uma Vez na América, e o incrível Tornatore, com seu Cinema Paradiso, que tem o final mais lindo e emocionante que já vi na história do cinema. Pesquisando cinema europeu, conheci Bergman, o cinema russo, Tarkovski, Eisenstein e o pai do cinema experimental, Dziga Vertov.
Mas nada me marcou mais do que quando descobri o movimento francês Nouvelle Vague. É um movimento muito jovem e revolucionário, que continua jovem e revolucionário até os dias de hoje, sem ficar datado. Ninguém me influenciou mais esteticamente, culturalmente e filosoficamente do que Godard. Alguns posicionamentos políticos dele eu relevo. Mas a forma de seus filmes, artisticamente, o amor que ele demonstra pela literatura e pela arte, para mim, é totalmente admirável. Por isso, ele é um dos poucos ídolos que eu tenho. Aliás, Godard fazia literatura com a câmera. Seus filmes parecem um livro de James Joyce ou de William Faulkner. Já perdi a conta de quantas vezes vi e revi O Demônio das Onze Horas, inclusive no cinema. Mas, apesar de idolatrá-lo, às vezes acho que prefiro Truffaut. Pois Truffaut não se leva muito a sério; ele defende a arte pela arte, e seus filmes eram tão bem escritos quanto os de Godard. Há trechos em O Homem Que Amava as Mulheres, por exemplo, que são verdadeira literatura, como: “As pernas das mulheres são compassos que percorrem todo o globo terrestre dando equilíbrio e harmonia.” E Truffaut fez a série Antoine Doinel, que eu adoro, e Noite Americana. E no movimento ainda há Alain Resnais, Claude Chabrol, Agnès Varda, Jean Eustache com seu A Mãe e a Puta. Por isso é o movimento do cinema com o qual mais me identifico. Há um sentimento de pertencimento em mim quando vejo um filme da Nouvelle Vague.
Na minha formação como cinéfilo houve fases. Teve um período em que pesquisei o cinema mudo. Outro em que vi as comédias antigas de Chaplin e Buster Keaton. Li o livro da entrevista de Truffaut com Hitchcock sobre todos os filmes já feitos por ele e fui procurando assisti-los. Teve a fase do cinema independente, em que tomei contato com diretores controversos e polêmicos, como Larry Clark, Harmony Korine, Todd Solondz, alguns até mais leves, como Gus Van Sant, Jim Jarmusky e John Cassavetes. Outros eu não tive estômago para ver, porém sei da existência, como El Topo de Jodorowsky, Pink Flamingos de John Waters, o shockumentary Canibal Holocausto, o cineasta LGBTQIA+ e insano Bruce LaBruce, que tem o melhor título de filme-paródia possível, que é O Advogado do Viado.
Como estamos falando de diretores polêmicos, admiro muito Lars von Trier, apesar de não conseguir assistir a Anticristo e de abominar Ninfomaníaca. Mas venero filmes como Ondas do Destino, a trilogia dos filmes dele que não têm cenário, Dançando no Escuro, Melancolia. Quem faltou citar? Eu gosto de tanta gente. Wenders, Paris, Texas e Asas do Desejo estão entre meus filmes prediletos. Kubrick, que tem uma filmografia curta, mas impecável; talvez eu goste menos só de De Olhos Bem Fechados. Mas 2001: Uma Odisseia no Espaço é o filme que mais vi na vida. O Iluminado ainda nunca assisti, pois não assisto filmes de terror. Laranja Mecânica dizem que é polêmico, mas às vezes acho que é uma comédia de humor negro. Talvez meu filme de guerra predileto não seja Apocalipse Now do Coppola, e sim Nascido para Matar.
Enfim, este texto já está muito longo e acho que o meu objetivo com ele já foi atendido. O cinema é minha arte predileta, porque foi através dele que cheguei à literatura e depois à filosofia. Para não cometer nenhuma injustiça com nenhum cineasta citado, eu deixo registrado a foto de uma camisa que comprei na Reserva Cultural, que cita só os mestres. Sempre que eu usava ela em alguma sessão alguém perguntava onde eu comprei. E por fim eu compartilho o link da live que gerou este texto.
https://www.youtube.com/live/cQwRBSXV-Po?si=e7sD63UI5oODUsSt
Obrigado a todos que leram esse longo texto - e meio pedante - até aqui.