Sobre o filme FEIOS
Autor: Abenon Menegassi
“Tratai primeiro do comer e do vestir, e o reino de Deus será naturalmenmte vosso”. (Hegel, 1807).
“Porque é irrecuperável toda imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela.” (Benjamim, Walter, 2012).
Com spoilers
A última cena do filme FEIOS (Uglies), 2024, com direção de McG e roteiro de Jacob Forman, Vanessa Taylor e Whit Anderson, exprime uma ilustração coerente do paradigma de Transtorno de Personalidade Narcisista, particularmente da noção de grandiosidade, conforme descrito no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM – V.
Trata-se de uma sociedade narcisista que se sustenta em um mundo distópico, que gira em torno do espetáculo do ideal de perfeição a ser calculado, contabilizado e investido no corpo, através da intervenção do saber técnico-científico e estético. Uma sociedade que cultiva os rituais xamânicos e milagreiros da providência divina da cirurgia anatômica corporal com fins a produzir e manter ideais de beleza e satisfação.
De acordo com essa sociedade, homogeneizada entorno do ideal de beleza corporal, a natureza humana, uma vez transformada através das intervenções das cirurgias modeladoras, alcançaria a perfeição. Assim, a hipótese sustentada é a de que alcançado este ideal, as guerras e diferenças sociais de classe, clãs e países, desapareceriam. “Quando todo mundo é perfeito, o conflito deixa de existir”, professa uma das personagens. E para que isso aconteça, a ciência age no corpo para desenferrujar os feios e torná-los uma versão melhor de si mesmos, a saber, a seu duplo.
Nessa sociedade, a liturgia não se dá mais em torno de sacrifícios de cordeiros a serem imolados no altar que, uma vez disposto a céu aberto, expõe-se à convocação das divindades que tanto protegem as colheitas quanto ameaçam e punem os indivíduos, tribos, por suas transgressões. Do gado ao homem, agora, o ritual sacrificial dá-se em volta do corpo humano e sobre o corpo humano, onde a faca que imolava os cordeiros passa a ser substituída pelos bisturis; metáfora da racionalidade evolutiva aplicada às de técnicas de corte.
O que a última cena do filme traz de importante é a premissa de que o sujeito de TPN aloca-se, de fato, em um patamar de elevada auto-importância e que, de lá, não dá sombras de querer sair. Ele, de fato, cultiva, quer dizer, professa e defende a fé de que há um Ser superior perfeito e, ademais que ele, por contato estético, pode ser tão perfeito quanto este Ser superior. E sem jamais se perguntar se a imagem de Deus, se é que ele deve ter uma, corresponde a essas imagens que ele supõe serem perfeitas em si mesmas.
E, também, sem se perguntar se Deus, em sua perfeição pode ser alcançado. Não é este o argumento de Agostinho ou de Aquino? Se posso conceber a perfeição, então posso conceber que Deus existe. Sim, ele existe e está ao alcance das mãos robóticas da ciência. No filme, esta é uma das distorções que a fé local defende.
O que a última cena do filme indica, portanto, é que a conquista da posição de Outro, através de ser objeto para o Outro, até passar a sê-lo, é a busca da posição narcísica do TPN, de grandiosidade par excelence. Lacan adverte para o perigo que é a adesão da mulher ao empuxo ao gozo Outro que se dá na posição fálica que faz borda com o mais além de gozar fálico no campo do Outro.
Se lemos: “Onde houver dúvida que o leve a fé”, é porque é a fé que pode tapar o buraco suspeitado no campo do Outro. Deus existe mas tem falta. Eu sou o próximo candidato a ocupar o lugar dessa sutura. O TPN, como todo perverso, defende a fé de que o Outro existe, de que ele tem uma falta ou falha e que ele, o sujeito humano perfeito, através da sua beleza física, constrangida pela ciência, outra forma de religião, pode, de fato, realizar essa costura enquanto objeto que, se acoplado ao buraco do Outro, pode estabelecer, com essa fusão ao Outro, nada mais nada menos que ... A Perfeição. Lacan (2008), “o perverso ...é um defensor da fé..., um auxiliar singular de Deus”, no caso do nosso filme, o deus ciência, o deus tecnologia cirúrgica que opera, corta, retalha, desloca, recoloca, substitui, aperfeiçoa..., tudo em nome de uma razão prática a serviço de alcançar o ideal, em suma, Deus.
Então, a fé, digamos, em sua prática ritualística, é o afeto crucial que, na economia libidinal da fantasia, sustenta o gozo de tamponamento do Outro que o sujeito dividido pelo significante exercita ao entregar-se como exposição demonstrativa consistente e compatível dessa lógica de fusão.
O que a fé estabelece, através da conclusão, ainda lógica, de que a perfeição estética do corpo é o caminho que pode elevar a Deus, é a certeza de que o objeto pequeno a pode alcançar, com a sua pequena perfeição (calçada em cirurgia corretiva de algum desvio da natureza localizado no nariz, na boca, nos olhos,...etc.), o corpo do próprio Deus em Sua divina Perfeição, bastando, para isso, apenas imiscuir-se nas bordas topológicas que o tangenciam com Deus; fantasia erótica de participação.
Diria, apressadamente, que estes sujeitos entenderam de um modo particular o que Platão introduziu no mundo através da teoria da Participação das Almas nas Formas e, logo, a aplica a si mesmo e a uma Sociedade professando a crença de que o mundo das ideias perfeitas de Platão pode vir à terra. E eles são a prova cabal da conquista tecnológica para a execução dessa possibilidade. E este é o objetivo maior da ciência enquanto religião: fazer descer os céus à terra, tal como ambiciona o Pai Nosso: “...venha a nós vosso Reino...”.
Daí o nome que os habitantes perfeitos dão à sua sociedade ser justamente Perfeição (Perfection), em contraponto com a comunidade da Fumaça (smoke). Aliás, fumaça é aquilo que, mesmo dissipatória, ou seja, provisória, passageira e ofuscante, pode tampar a visão e impedir tanto o exibicionismo (ver o outro me vendo) quanto o voieurismo (me ver vendo o outro), suplicio dos narcisistas.
Ademais, pode, também, garantir a sustentar a relação eu/outro/Outro em termos sado-masoquistas, já que os jovens do limbo aguardam ansiosamento a data em que farão 16 anos para serem operados, quer dizer, submetidos ao desejo do Outro, e, assim, fazer parte do grupo daqueles que servirão esse Outro/outro como objetos submissos e obedientes.
Mas, o que a cena final do filme nos ensina? Ensina que o TPN obriga o sujeito a viver em uma bolha a salvo dos feios e imperfeitos obrigando-se, para isso, ao isolamento radical ou, no minímo, ao convívio social apenas com iguais pois, se esse outro tem aquilo que eu tenho é óbvio que ele não vai querer roubar o que é meu, logo, pouco espaço haverá para a inveja. Mas, isso, apenas aparentemente, pois trata-se de uma sociedade do espetáculo (com abelha rainha), em que os pares se vigiam constantemente.
Isso, claro, se o procedimento estético alcançou o seu grau máximo de sucesso e garantiu a tão desejada felicidade que, sonhada por tanto tempo, identifica-se como satisfação plena conquistada pela cirurgia. É por isso que é perguntado a um dos personagens se ele está satisfeito com o seu procedimento. Milagres existem e a ciência pode garantir o seu, basta crer. Não podemos esquecer que esse grau máximo de perfeição é conquistado, sobretudo, pelo fato omitido de que existe uma seletividade pré-cambriana no método operatório que a ciência prática, a saber, que as cirurgias mal sucedidas são ignoradas através de uma seletividade artificial que consiste em eliminar e jogar no lixo as pessoas cuja cirurgia fracassou. Assim, óbvio, a sociedade da perfeição é menos o resultado do sucesso de uma ciência eficaz generalizada do que efetivação de um depuramento, diria, eugenista, de uma comunidade que se coagula pela separação do joio do trigo, do soro da nata. Isso até que, por sua vez, a natureza passe a fazer a sua parte via mutação genética adaptativa. Elimine-se o negativo e a perfeição emergirá “naturalmente”.
Durante a passagem dos letreiros finais do filme, eis que cai no colo a pergunta indesejada. Isso porque a beleza, assim como a fé, cega, e a gente quase se convence de que quer ir para um set de cirurgia, também. Afinal, não basta se achar adequado, pois, o outro tem que achar, junto.
E o outro? Quase ia me esquecendo desse incômodo! Bem, o outro que fique lá fora. São escolhas. Empurremo-los nós mesmos para as hostes externas ao nosso muro e vivamos nessa linda e confortável bolha, tão quietinhos quanto o necessário para que esses outros, inadequados, não possam chegar perto e, muito menos, entrar, afinal, a feiura ofende.
O negócio é sério. Se os feios devem ser excluídos, é porque a visão de mundo que se concebe a partir do paradigma da perfeição é a de que o mundo deve ser dividido em pelo menos dois, dois lados desproporcionais. O lado dos feios, que acreditam na Fumaça, e o lado dos perfeitos que acreditam na beleza, como se essa fosse o próprio Deus. Deus é o corpo corrigido. Se Deus está no corpo em sua forma bruta, então Ele pode se revelar. Isso se o procedimento tiver sucesso em seu gozo de fazer a natureza sair de seu desvio e ser ortopedicamente curada. Assim, você pode ser esse Deus, agora fusionado com você.
Insurja-se contra o olhar vesgo, o nariz torto, a boca murcha e você sairá do pod de correção divinizado. Detalhes importantes para todos os narcisistas. Aí, é só gozar como nunca se gozou antes, na vida e até a morte. Os feios que r.i.p. com a impotência e com a emasculação, afinal, eles escolheram ser assim e não querem mudar.
Os feios que fiquem lá fora, que é onde merecem estar. Divida-se o mundo em dois. O mundo ideal, isolado do mundo real. O mundo ideal do gozo pleno e feliz da perfeição física, longe do mundo real, infeliz, e pleno das incorreções da natureza.
É necessário dividir o mundo em dois. Aqui, devemos resgatar a lógica cartesiana aplicada à nossa essência narcísica de grandiosidade e sobrevivência: “lá onde eles são, nós devemos existir.” Por que? Porque a existência deles ameaça a nossa. Negação por dupla exclusão já que o território deve ser monopolizado e a ameaça banida. Heil kapo, Achtung!
Mas, cuidado! Eles tem armas e querem nos destruir. Querem espalhar a fumaça para que nos tornemos invisíveis no meio dessa forma de implantar a escuridão. Como poderemos nos ver diante dos Espelhos/espelhos, e entre nós mesmos, espelhos uns dos outros, se a Fumaça viver e nos ofuscar? Já perceberam como ela deixa tudo e todos sujos? Portanto, os feios e sujos devem ser mais que isolados, devem ser destruídos, dado que querem nos destruir primeiro. Não era essa a lógica nazista que culminou com a tentativa de implantar na Europa a ideia de uma solução final? Lógica que precisou identificar o outro a ser exterminado como um nada mais que Laos (piolho), ou seja, o mais repugnante inseto que pode existir. Tão insignificante que sua morte nada implica na ordem do universo; morte necessária e, por isso mesmo, franqueada a qualquer um e ao Estado, como se esse inseto pertencesse à classe jurídica romana do Sacer (matável e não sacralizável), tal como nos ensina Agambem em seu livro Estado de excessão.
Devemos deixar no mundo apenas os nossos iguais e, para além, no limbo a esperar pela sua vez, que chegará aos dezesseis anos, tão somente aqueles que sustentam o desejo e a esperança de se tornarem um de nós, iguais a nós. Quanto aos feios sem remissão? Bem, eles tocarão o fundo, relegados aos fornos e às valas comuns; e nós tocaremos o céu fazendo-o descer à terra. E não teremos problemas maiores com isso. Veja-se o filme Zona de interesse, 2023, do diretor Jonathan Glazerem em que um nazista vive com sua família nos arredores de um campo de concentração.
Sob um céu azul e de sol, compartilhando uma natureza pastoral, os membros da família mergulham nas águas saturadas com as cinzas dos mortos que foram gaseados, incinerados e descartados algumas centenas de metros acima do rio em que estão tomando banho. Até aqui, nenhuma comoção, mas, antes, a indiferença inocente de quem pertence a um mundo que naturalizou um modo de vida que se assenta sobre camadas e mais camadas de uma dieta moral de pós-verdade que não dá mais margens a qualquer dialética e nem a quaisquer questionamentos.
Nosso zelo deve ser, portanto, dirigido à consecução de séquitos e mais séquitos de adoradores lobotomizados que se agradem na missão de serem os nossos macacos voadores em todos os momentos que os requisitarmos. Sua adesão ao posicionamento de sujeito sado-masoquista regula a nossa instabilidade e, assim, podemos viver melhor. Mesmo que contra a sua própria gente, agora, já não mais. Portanto, potencializemos a estupidez já que a ignorância é o resultado do não pensar, condição sine qua non para evitar a rebeldia. Livros, para quê? Livros são perigosos, e eles gostam de ler, o que põe em risco a nossa racionalidade instrumentalizada em torno desse gozo especular pacificador.
Por isso, cooptemos os jovens em sua doce ilusão de um mundo melhor. Os jovens que deslizam, ainda que sobre máquinas impulsionadas pelo artifício de motores (ingênuos, mas não tanto), sobre os escombros e as ruínas da história e que, mesmo assim, como as crianças criadoras de Nietzsche, encontram graça e leveza até no caos e, que sabem que podem trazer o Grande Meio Dia, redentor, a este caos. Impossível não associar esses jovens em seus skates ao Angelus Novus de Paul Klee, releitura de Benjamin (2012), em Sobre o conceito de história. São uma releitura do anjo de Klee. O Anjo de Klee olha, aterrorizado, para traz, para a catástrofe e para as ruínas. Ao contrário do Angelus Novus de Klee, as jovens protagonistas do filme se alegram pela simples possibilidade de brincar por cima dessas ruínas, quase que ignorando-as, como se elas não estivessem ali mas, antes, estivessem deslizando sobre uma natureza intacta e humanizadora. Cabe a questão sobre que espécie de subsunção redentora esses jovens estabeleceram com a vida para se tornarem tão leves, assim.
Por sua vez, continuamos perfeitos: aliciemo-nos e os agenciemos..., eles virão. Sim, as pessoas, incautas que são, acreditam no que querem, mas, não se deixam enganar para sempre. Contudo, quando eles nos descobrirem, terá sido tarde demais; para eles, claro. Nossa beleza e nossas roupas imaculadas nos encobrirão por muito tempo. Devemos aniquilar, também, os traidores e as anomalias, ou seja, aqueles que usam a nossa ciência contra nós mesmos. Cacem-nos! É o Progrom. Neste vale de orquídeas, são eles os párias, os parasitas, não nós. Nenhum antídoto deve ser produzido para neutralizar a sedação que inoculamos neles. Lindos e Idiotas, eis a Perfeição.
Para encerrar. Em nossa ilusória perfeição narcísica ainda somos capazes de nos lembrar do outro, de assumir e cumprir compromissos com o outro? Não o outro igual, mas, o estranho, o outro diferente, o retirante, o sacer, o refugiado, o pobre, o analfabeto, o..., o..., o...? Podemos evacuá-los, desde os lugares comuns, para as regiões infamiliares? Podemos quebrar pactos sociais milenarmente conquistados e voltar à barbárie do “Nós sim, eles não”, já que eles ameaçam as nossas existências, quer dizer, as nossas essências e as nossas maneiras de ser e existir?
A pergunta, então, recai sobre se em uma sociedade perfeita, cabe, ou não, a adaptação dócil a engenharias de exclusão de todo tipo de “imperfeitos”, estes, no mais das vezes, produzidos, como resíduos ejetados desde o funcionamento das próprias máquinas produtoras de perfeição? Como eu mesmo escrevi em uma poesia: “Somos todos a proporção inversa de tudo quanto existe e cresce e que, ademais, neste torvelinho fatídico, empilha sobre nós os detritos de estar crescendo”. Correção: não somos apenas caixas ou latas que recebem os resultados de operações que produzem detritos, outrossim, somos, na verdade, os próprios detritos. Sim, nós somos o lixo da sociedade que, após fazer o trabalho sujo, como descreve Paulo Arantes (Salet, jogados no aterro sanitário da história). Em suma, como uma sociedade perfeita poderia instituir e abrigar, ainda que sob outros pilares que não os da propriedade privada ou do capital x trabalho, qualquer outro tipo de divisão social e de luta de classes? Contradição que o filme explora, acertadamente, à exaustão.
Tem um detalhe no filme, salvo miopia minha. Tive a impressão de que a personagem que protagoniza a história não é vesga. Se eu enxerguei bem, cabe a pergunta: por que ela se toma como vesga se ela não é e, ademais, por que os seus amigos a enxergam vesga, também? Ademais, se ela é, de fato, vesga, é tão pouco que nem dá quase para perceber. Assim, por que é que para ela esse detalhe assume proporções ontológicas para ela, isso a ponto de determinar todos os seus desejos e formas de gozo? Qual seria, assim, a origem dessa “vesguice”? Colonização do olhar?
O mais importante, assim, é observar como ela, a personagem, é contada pela ideologia da perfeição, como ela se conta a partir dessa ideologia e como ela conta aos outros todas as mentiras necessárias para a veiculação dessa ideologia, mentiras das quais ela não consegue ainda escapar, pois são as fundações de seu ser e destino, e que levará algum tempo para conseguir fazê-lo. E ela será forçada a conviver com essas mentiras até que, por fim, consiga enxergar com seus próprios olhos, os quais, de vesga, no sentido moral e epistemológico, não tem nada, nunca teve, salvo quando iludida pela ideologia vigente da pólis Perfeição..
O que se dá a entender, desde essa conjectura, é que importa tanto o corpo real, visível a olho nu quanto o corpo investido libidinalmente de ideologias de consumo, de padrões de beleza, etc, corpo este que será o parâmetro sacrossanto para moldar as opiniões que se erguem calcadas em crenças que se originam desde o além do visível. “Se você se vê assim, eu te vejo, também...” e, doravante, o detalhe, quase invisível, toma toda a cena e toda a referência e condição de desejo.
Como diria Sartre (1988), o homem primeiro nasce, só depois é que se projeta na direção de uma liberdade que exige responsabilidade. Neste homem, a existência precede a essência e, aqui, a essência é a aparência, logo, a feiura, aqui, é apenas um aparente provisório, pois desvio da natureza. Se o feio é o aparente que precede a essência, em breve a essência verdadeira, ideal de laço sólido com Outro, se dará através do existir em perfeita harmonia com o Belo, o Bom e o Justo do qual será possível gozar como se, agora, aquele outro eu que assumiu o pacto já não existisse mais. Sim! Eu não sou mais aquele. Não é disso que se trata ao se considerar o estatuto do duplo em Sarte? Para sartre, a consciência enunciativa e clarividente de Descartes seria suficiente para garantir esse auto conhecimento num monismo fenomenológico sem porões e sem bastidores? Para Sartre, assim como para Descartes, uma vez que o ser consciente do cogito garante o posicionamento no existir (o Dasein, ser-aí, de Heidegger), fica fora de cena o ser outro eu que em mim habita e que questiona, portanto, o meu descentrameto inessencial, ou seja, em termos de Lacan: “Penso onde não sou, sou onde não penso.”
Consequentemente, será que, agora, cegados e no fundo dessa caverna, seremos capazes de lembrar e de nos compromissar com o pacto outrora selado ou, nos daremos o direito, “mais que justo, pois sonhei tanto com isto...” (como se este sonho já não fosse produto de meu próprio desdobramento narcísico sobre a minha consciência, ou, como se esse sonho me fosse externo e, por isso, justificado), logo, de simplesmente esquecer, de simplesmente apagar a memória e...gozar. Gozar como se (uma vez que, de acordo com a religião da Perfeição, a aparência é a essência), agora aquele outro eu que assumiu o pacto já não existisse mais. Sim! Eu não sou mais aquele. Frase contraditória, pois é auto denunciativa, dado que se afirmo “aquele”, sei de quem estou falando e, portanto, confirmando que ele ainda está aqui, em mim.
Demonstra isso, o sujeito que cirurgiado e lobotomizado, torna-se outro tão robótico que já nem fala mais, metamorfose concluída, eis a pura alteridade de si mesmo. Um duplo negativo, quer dizer, um outro eu que já não abriga quaisquer resquício do foi um dia. Tão cego que aparenta nem se importar mais com o seu aspecto físico “ideal”.
Então, se o sujeito, agora lobotomizado não é mais quem foi antes, dado que sua essência mudou substancialmente, pouca esperança há que se guardar de que ele se lembre. Ele não pode, pois é outro. Como iria se lembrar de algo que não viveu já que a lobotomização extirpou, não apenas as suas lembranças, mas, o próprio órgão que protege e dinamiza essas lembranças: a sua memória?
Mas, e se nada disso aconteceu? E se em algum rincão profundo e escondido dessa casca que quer se passar por essência, houver ainda algo parecido com um resto de dignidade, dignidade bastante e suficiente para fazer lembrar, quer dizer, não esquecer e, sobretudo, agir?
Então, essa imagem projetada no espelho – essa imagem artificializada, construída em mim por engrenagens de dominação, imagem tão adorada por mim mesmo, imagem que me faz esquecer Eco, pois Eco desvia-me de meu olhar para mim - essa imagem seria suficiente para me impedir de lembrar de quem eu sou, quem eu fui e quem são, de fato, os meus iguais, e sobretudo, que não me obrigue a pensar em quem serei?
Eles estão lá fora e eu estou aqui, protegida, guardada por Deus, gozando meus metais. Isso me basta. Por que eu haveria de sair se posso, vitoriosa, ficar na grande bolha da Perfeição? Sim, eu os enganei, é verdade, eu disse que voltaria e que o procedimento seria apenas uma forma de testar o antídoto que salvaria a todos. Sim, eu os enganei, em nome de meu ideal eu os enganei, e consegui a minha cirurgia. Eu migrei do limbo ao céu. Traí não só o grupo mas, todos aqueles que, como eles, também estão presos nos porões do País das Perfeições. Pobres Alices, jamais sairão de lá. Não, se o preço a ser pago custar-me abdicar de manter-me diante do espelho (que faz o que eu peço apresentando-me modelos de ideais, gozando de minha sublime perfeição. Por que EU voltaria? Minha memória? Com o tempo eu a soterro nos porões (porões que eu tanto nego), da minha “essência”, também. O importante é ser feliz e, com os mesmos que eu, cqc. E, assim, a Divina Bolha cresce, empurrando para fora aqueles que não podemos suportar. O filme nos deixa com essa pergunta: Alice esqueceu? Apagou (gomme), a cicatriz? A beleza que exclui o outro é o novo conceito de história? Não precisa mais.
SP, 16set24
Referências bibliográficas
Agambem, Giorgio. Estado de excessão. Edições 70, 2003. Lisboa, Portugal.
Arantes, Paulo Eduardo. Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história (uma visão no laboratório francês do sofrimento social. 2011. Tempo Social. VL - 23. Dossiê Subjetividade e Cultura: O sofrimento no social.
Benjamim, Walter. Sobre o conceito de história. Tese IX. In: O anjo da história. Autêntica, 2012, pág. 13.
DSM – V. Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - American Psychiatric Association Administração 2012–2013.
Glazerem, Jonathan. Zona de interesse, 2023, filme.
Hegel. Carta de 30 de agosto de 1807 a Karl Ludwig von Knebel.
Lacan, Jacques. Seminário 16 – de um Outro ao outro. Zahar, Rio de janeiro, 2008. Pág. 245.
Menegassi, Abenon. Entre a ponte e o olhar. Poemas não publicados.
Sartre, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Coleção os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1988.
Suzak, Marcus. A menina que roubava livros. Editora Intrinseca.