Sobre o filme Substância 2024
Sobre o filme substância de 2024
Dirigido por Coralie Fargeat
Autor: Abenon Menegassi
"O real aparece onde o semblante manca" (Lacan, Sem. XVIII).
Quem é voçê? Voçê se conhece? Voçê sabe quem voçê realmente é no mais profundo de seu desconhecimento? Como voçê pode dizer do que voçê é capaz ou do que não é capaz ? Na maioria das vezes é assim: voçê se sente incapaz de cometer um crime, até que uma parte irreconhecível de seu ser vem à tona e aquilo que voçê nem imaginava que podia fazer, acontece.
Então, logo vem a pergunta: Como voçê pode, como isso tornou-se possível na realidade, na sua realidade? Não estaria a resposta na ideia de que no começo realmente havia apenas um pequeno embrião, aparentemente inocente, inofensivo, dormente mas que, com o passar dos anos, foi evoluindo evoluindo até que, num piscar de olhos, empurrado por um gesto qualquer, A Coisa rompeu diques, rasgou a crisálida da superfície da lagoa e, com toda a sua ferocidade, emergiu para concluir o seu destino, o único que desde o começo já estava lá, impacientemente, à espera, do momento de acordar?
Essa ideia guarda um desalento. Se não somos o que pensamos acerca de nós mesmos, quem somos, então? Somos, realmente, alguma coisa já dada, como dito no parágrafo acima, ou somos donos do nosso destino? Um esboço de resposta pode estar contido na ideia de que mesmo sendo o furador de papel de Sartre, ainda assim, podemos antecipar nossas ações para conduzí-las ao melhor desfecho possível. Tal tarefa exige o esforço de consciência, preço pelo qual nem todos querem pagar.
O filme Substância representa todo ser humano mas, sua história em particular, retrata o drama de todas as mulheres em qualquer tempo e em qualquer lugar, ou seja, representa o desafio de como equilibrar o estar posicionada entre dois mundos distintos; o humano, castrado, e o mais além, também humano, perfeito, onde o gozo Todo, em excesso, possa se dar como atributo de sua perfeição já que ela, aA Mulher, por ser não toda fálica (por uma lógica de estrutura), acredita que no campo de sua falta, que não precisa necessariamente coincidir com o vazio, o gozo místico com o próprio Deus, gozo D`A (barrado), Mulher, pode e deve advir como verdade.
O filme mostra uma questão importante sobre o duplo, tanto em seu aspecto positivo quanto negativo. A protagonista não está satisfeita com o seu corpo, particularmente com o seu rosto. Ela quer arrancá-lo porque de certa forma sente-se um monstro.
Seu movimento será, portanto, no sentido de equilibrar um pouco as coisas através de uma injeção que promete um duplo mais jovem, perfeito. Esse equilíbrio exige a alternância (por contiguidade), de tempos em tempos, entre ser uma mulher que passou dos cinquenta anos e ser outra mulher com bem menos que a metade de cinquenta anos, ou seja, exige saber fazer co-abitar as duas no transcorrer do tempo. Ambas são uma só, e não caberá a hipótese de se aniquilar para que a outra permaneça e nem aniquilar a outra para pemanecer. Tal ruptura implica na destruição daas duas.
De outro modo, cada qual terá que se deparar com a castração naquilo que a existência de cada uma-outra impõe a si mesma: ser um resto. Se x levanta, y cai. Elizabeth quer o gozo Outro, o gozo mais-além, quer o gozo não fálico. Se antes o outro falava desde a sarsa ardente agora, fala com a pessoa ao telefone para dar uma pessoa perfeita à luz. Mas, seja quem for esse Outro, não tem outro semblante senão o telefone/chofar. Então, elizabeth não quer, por sua vez, o gozo fálico que a castra como objeto e a coloca em posição de pareamento com outro objeto igualmente castrado (Fred e seu objeto abjeto, papel molhado, que não adquire valor de fetiche para Elizabeth, ao contrário do brinco que brilha, Sparkle). Elizabeth não quer isso. Sua psicose dissociativa/perversidade (Para Lacan, o perverso é um defensor da fé). É neste drama que o seu corpo inteiro e sua personalidade estão implicados. O perverso também tem um duplo ideal.
Na sua relação com a verdade, que tipo de fé: alethéia, veritas ou emunah, ou as três?), se desenvolve justamente porque ela almeja a completude com um Outro (da ciência, da arte, da cosmética, do super ego, etc), que lhe exige a beleza que não pode oferecer mais. Então, o Outro (através desse outro sádico), a rejeita, e a expele. A partir desse desencontro no banheiro, quando o Outro fala pela boca de seu chefe, discurso corrente sobre o padrão de beleza feminino ("depois dos cinquenta para..."), ela tem um choque traumático que a desloca do lugar de acoplamento perfeito com o Outro, já que ela não pode mais responder ao "que queres de mim?" (Che vuoi?), desse Outro. Desde então, realidade e ideal não se complementam mais. Não há suplência possível. Por outro lado, observe-se que há uma sutil transposição na fé do perverso. Ele quer ser objeto fálico do Outro até as raias de vir a se fundir com o Outro, diria, quase, tomando o seu lugar.
É a esse ponto que a fé do perverso o leva, paroxisticamente. Diria, que ele trai o próprio Deus, pois, pretende permanecer em seu lugar mesmo sem ter as insígnias do ideal que a posição exige. O que ocorre é que em sua grandiosidade, ele acredita que as tem. E é por isso que a clínica com os narcisistas é tão difícil, pois, eles não procuram tratamento quando quer produzir um saber sobre como ser objeto castrado para o outro, mas, quando caem do lugar do Outro e, desesperadamente, querem um saber, ou seja, a fórmula da Substância" para voltar para lá. Enquanto não caem, querem passarelar pelos corredores da vida recebendo a admiração de quem as tem. Para eles, não há chofar ou trovão que os inibam e os façam parar.
Será neste movimento de se ver como duplo de si mesma, naquilo que esse duplo comporta de monstruosidade face ao seu ideal, que ela se permitirá ser objeto de experimento de uma substância que cumpra essa promessa de reinjetá-la como objeto de desejo fálico perfeito no campo do Outro.
Assim, o que Elisabeth quer, como Toda Mulher, barrada que está de fantasiar, é ser o objeto que corresponde à fantasia do homem, mas, mais além, à fantasia, digamos assim, do Outro. Então, ela se injeta, pois não pode suportar estar “fora”. Coloco as aspas porque ela se sente fora, dado que sua imagem no espelho a contradiz e a coloca em um lugar desde o qual ela não se reconhece, ou seja, desde um lugar em que ela se aborda especularmente em sua imagem, quer dizer, desde o lugar de quem se vê às voltas com o seu semblante, com o que aparece aí e que, ademais, lhe faz questão sobre querer ser ou não essa imagem, esse semblante, pelo qual ela tragicamente se responsbiliza.
Colocado desse jeito, o filme aborda o problema humano de como é viver nas sociedades narcísicas que criamos. O filme Feios, aborda o mesmo tema do lado dos jovens. Estamos sempre insatisfeitos com nós mesmos, estéticamente falando. Somos monstros se não correspondermos ao padrão ideal imposto pelas indústrias que manipulam os gostos. Se, nas ficções de outrora, o monstro era o nosso outro duplo interior, que invadia a cena para tomar o nosso lugar, então, era esse outro indesejado quem deveria desaparecer para que pudéssemos continuar e permanecer no lugar que sempre foi nosso. Agora, Substância mostra o contrário, mostra que somos nós que, como monstros do nosso duplo externo, devemos desaparecer para que esse duplo perfeito se revele e permaneça, vivendo tudo aquilo que nós, os condenados, não nos cabe mais. Somos o duplo que não deve existir, somos o duplo indesejado do nosso próprio duplo. Duplo esse que se outorga o direito de permanência, a despeito do nosso desaparecimento, pois se acham superiores na escala adaptacionista darwiniana. Sue, em certo ponto do filme, percebe isso e busca desesperadamente o seu próprio duplo, quer dizer, a sua própria versão melhor. Como se tudo fosse, como no consumismo, uma questão de descartar o velho e substituí-lo por um novo.
Mas, o seu duplo era Elizabeth. Assim, ela volta a ser o que é, e que não aceita ser. Se, no começo, o duplo de Elizabeth é Sue, agora, o duplo de Sue é Elizabeth. E Sue mostrará toda a sua raiva ao enfrentar o duplo que ela abomina e quer recusar. Sue, assim, sem perceber, recusa-se a si mesma.
No filme, Eles vivem, Jhon Nada tem uma briga de quase dez minutos com um amigo para o qual ele quer mostrar como a ideologia nos afeta. Ele quer obrigar seu amigo a colocar um óculos que mostra o que há por trás da ideologia, como o mundo realmente é. Mas, alerta Zizek, quando achamos que estamos fora da ideologia, aí é que estamos radicalmente dentro dela., não é possível escapar de comer da lata de lixo da ideologia.
Quando Sue está espancando Elizabeth, o que ocorre é que ela está profundamente tomada pelo lixo da ideologia que a faz pensar que é perfeita por causa de sua aparência exterior. Ela despreza quem ela é, de fato: Elizabeth, pois, uma nada é sem a outra e, sobre a condição dessa ourta que é a dela, também, Sue nada quer saber. Impossível não lembra de Doriam Grey, e sua obsessão em não envelhecer enquanto, no espelho, bem escondido, seu duplo se degenera.
Sue quer ser eternamente jovem. Assim como Elizabeth não admite e não elabora a sua condição, Sue também não quer admitir que precisa estar em equilíbrio com Elizabeth. Ao mirar a realidade como ela é, estampada na condição de Elizabeth caida no chão, Sue, contaminada pelo veneno da ideologia da estética (e que coincide com a substância do ser), faz com que ela passe a odiar Elizabeth, justamente, a quem ela deveria acolher e cuidar.
Para Sue, a morte de Elizabeth representa o desaparecimento do tempo que transcorre e que a joga na decreptude. Batendo em Elizabeth, Sue acredita parar o tempo para que ela não venha a ser esse duplo que está no chão e que ela não assimila e não reconhece em si mesma. Mas, a substância acaba e Elizabeth e Sue, como sempre foram, acabam por fundirem-se uma só. Para a mulher, a sua relação com a mãe e com a sua criança interior não podem ser da ordem da cisão, como no filme em que uma dá as costas para a outra e, logo, uma quer falar, mas, não consegue e, a outra já não quer mais ouvir, antes, quer subir ao palco e, sem remissão...continuar.
No final, tarde demais, Elizabeth pede que a reconheçam tal como ela é. Paga um preço muito caro, por não ter percebido a tempo que a sua condição exige um semblante que seja outro que não aquele que se coloca à disposição de um gozo auto centrado e que, ademais, admite parceria apenas com o gozo Outro, o que supostamente a abrigaria da castração. Na verdade, Elizabeth não consegue perceber isso, pois, ela sobe no palco paramentada com máscaras, de um jeito que indica que não houve qualquer mudança de posição. Ela diz: "ainda sou eu...". Sim, ainda é, pois se tem algo que nehuma substância é capaz de fazer, é justamente implicar o sujeito para que ele proceda a um giro subjetivo na direção de querer saber algo, ou melhor, querer construir um saber sobre as suas formas de sofrimento, seus sintomas e seu gozo. Elizabeth e Sue não conseguem elevar-se à dignidade de "a coisa", objeto pequeno a. Cair de sua posição de objeto que exerce a função fálica para o desejo do Outro significa degradação, aberração, monstruosidade. Nelas, a presença do monstro dá-se como marca da ausência da "a coisa" como resto. Por isso, a sua aparição como monstro se dá em uma forma enorme e desproporcional. O monstro que Elizabeth e Sue encarnam nada mais é que a sua condição de não saberem se humanizar fora do campo do excesso, ou melhor, da exceção. De certo modo, é isso que o olhar atento da platéia não perdoa, pois, o público quer, sim, ver o espetáculo, mas, naquilo que ele encerra de transcendencia de um humano que continua sendo, em sua superação, ainda assim, um humano. na via oposta, Elizabeth e Sue resumem aquilo que se poderia chamar de "Folie a due" (loucura a dois), auto destrutivamente.
A meu ver, a cena mais comovente do filme é aquela em que ela, após se ver despedaçada, quer dizer, sem um semblante que a reinsira no social, arrasta-se como um ovo (resto do original), com rosto para, assim, tentar se sustentar em um mínimo de semblante, um mínimo de ser para o outro e para si mesma, um mínimo de humano possível, uma máscara, que a faça ser desejada. No palco, isso se dá, também. Mas, os coiotes, como sempre, não entenderam absolutamente nada.... Elizabeth, também, não. Assim, como Carrie, a estranha, ela se desloca pela cidade, banhando tudo e todos com seu sangue, metáfora para ódio, amor, dor, desespero, etc, mas por quem, se não por si mesma e por seu ideal despedaçado?
No filme, Elizabeth e Sue representam a mulher em sua condição de objeto de uma sociedade que administra um Outro da indústria e do comércio da beleza enquanto padrão ouro do feminino, ademais, em sua relação de exigência parental, o que causa formas de vida em que o resultado é o sofrimento por não se encaixar à expectativa do ideal.
Trata-se da especulação acerca da questão de como a mulher se insere no campo da lei e da função fálica, outrora encarnada pelo pai. Se o específico do feminino é oscilar entre dois gozos, cabe observar que a indústria da saúde e da beleza perfeita já perceberam isso e já aprenderam sobre como manipular o desejo da mulher (posição na estrutura), no interior desse campo em que ela oscila entre dois impossíveis, mas que, para elas, nem por isso deixa de ser necessário. Como isso acaba? Sangue prá todo lado, menos nos bolsos dos Outros, é claro.
Tanto Sue quanto Elizabeth (são a mesma), buscam a consistênica de seu ser no sentido, ou seja, justamente onde não encontrarão, jamais, pois ele nunca estará lá, quer dizer, no lugar onde sentido e saber se coadunam em verdade, a verdade sobre o ser.
O que elas não se permitem experienciar (demência precoce), é a hipótese de que ao ser só cabe viver, enquanto falante, no campo do sem sentido (pas du sens), no passo do sentido, na passagem do sentido, na transição do sentido, próprio da cadeia significante.
Querer parar o tempo é querer cristalizar-se num semblante de sentido univoco e inequivoco, diria, apolíneo, negando, assim, que o sujeito embora seja aquilo que um significante representa junto a outro significante, este sujeito nunca está lá neste significante outro em que ele, sujeito , escapam na hora de se fechar a mão para segurar o significante que recebe eessa representação
Veja-se, portanto, que a aposta já está perdida de saida, pois, se o sujeito busca consistência e compatibilidade, pelo olhar de si e do outro, em uma fórmula que está fadada ao non sense, embora prometa o contrário, é óbvio que todo o universo "consistido" desmoronará. mas, do cosmo ao caos, numa fusão enrijecida, Beth e Sue Sparkle, julgam-se estrelas que podem brilhar para sempre. Isso, "para sempre", a empresa que ofereceu a injeção não prometeu que aconteceria sem custos. Ela, antes, impôs regras claras, mas, não foram cumpridas.
Prova disso é a placa em forma de estrela solitária cimentada na calçada da fama. É interessante ver como o semblante iluminado de Beth, materializado nessa estrela, vai se apagando com o tempo. A estrela na calçada recebe todo tipo de maus tratos (destino de Beth?), de quem anda sobre ela. Primeiro, ignorando-a. Segundo, esquecendo-a. Isso é o que Beth e Sue não conseguem suportar.
O que elas não percebem é que aquilo que não recebe representação no simbólico, retorna como resíduo não elaborado no real. Beth e Sue quiseram ser o sintoma do Outro. Como em toda relação, encontraram o meteoro da devastação. Quiseram apenas o sólido do amarelo-ouro. Não cogitaram a hipótese de que as cores compõem-se em gradientes transitáveis de um ao outro.
Encrustradas no discurso da ciência, Beth e Sue embarcaram na hipótese de um semblante único, sem mediações que pudessem tornar suas existências um pouco mais suportáveis. Sim, Elizabeth, ainda é voçê que está aí. Será? Cabe perguntar: por trás da aparência somos a essência não revelada e não reconhecida, nem por si e nem pelo outro, ou, não há separação entre um aparente e um não aparente, sendo os dois um só e, logo, somos o que nos damos a ver aí, nos palcos da vida, essência na aparência, sem maquiagem e sem escamoteação?
No desfecho, finalmente juntas numa só, Beth e Sue se transformam-se em um não-eu, quer dizer, num outro repugnante, ou, definitivamente, acabam colocando à mostra o que sempre foram, por dentro, para além do que as lentes podiam captar?
A pergunta é atual, cabe para todos, em qualquer lugar e época. Voçê é o que pensa ser, ou, para além de si mesmo um outro voçê aguarda, em silêncio, pacienetemente esperando o momento certo de vir à tona para, impiedosamente, te dominar? Neste momento, então, frente a frente com a sua substância, que sentido, todo ou não-todo, voçê se dará?