A REPRESENTAÇÃO DO NORDESTE NA SÉRIE CANGAÇO NOVO

Resumo

O presente trabalho aborda sobre a análise da representação do Nordeste e os elementos que evocam a nordestinidade na série Cangaço Novo, disponível na plataforma de streaming Amazon Prime Video. A pesquisa tem como objetivo principal identificar como a identidade nordestina é retratada na trama, sob a perspectiva dos signos da nordestina. No decorrer do estudo, a série Cangaço Novo é explorada em profundidade, com uma análise minuciosa das características que compõem a sua representação do Nordeste e dos nordestinos. Foram analisados elementos como o cenário, os personagens, os diálogos, as tradições culturais e as paisagens específicas e a fotografia para a construção dessa representação regional. Utilizamos como referencial teórico PAIVA (2015), SANTOS (2018), AZEVEDO (2011), CÂMARA (2015), que nortearam a discussão dos signos de nordestinidade e representação do nordeste na mídia, bem como outros textos que discutem sobre questões do semiárido nordestino. A metodologia aqui utilizada foi pesquisa bibliográfica e análise do episódios da série.

Palavras-chave: Nordeste; série; Cangaço Novo

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a série Cangaço Novo, disponível no streaming Amazon Prime Video, com seus oito episódios, pertencentes a primeira temporada. Verificamos como a identidade nordestina é representada na trama, sob a perspectiva dos signos de nordestinidade. Reconhecendo aspectos da história do cangaço, através de Lampião e de Valdetário Carneiro. Assim como, as problemáticas sociais existentes naquele período, tendo em vista que, algumas ainda continuam se perpetuando em pleno século XXI.

Para embasamento teórico, utilizamos PAIVA (2015), SANTOS (2018), AZEVEDO (2011), CÂMARA (2015), que nortearam a discussão dos signos de nordestinidade e representação do nordeste na mídia, bem como outros textos que discutem sobre questões do semiárido nordestino. A metodologia aqui utilizada foi pesquisa bibliográfica e análise do episódios da série.

1. CANGAÇO NA MÍDIA

O cangaço ganhou força no nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX, quando a recém nascida Velha República tentava dar um ar de nova nação, o cangaço era um impedimento para os políticos desse “novo Brasil”, que queriam impor uma nova civilização.

Esse movimento foi liderado por Virgulino Ferreira da Silva, popularmente conhecido por Lampião, e foi como um Robin Hood da caatinga, Lampião parecia encarnar a luta de classes da região onde nasceu. Ele e seu bando roubavam dos ricos para ajudar os pobres, mesmo que todas as classes fossem atingidas pelos crimes (que incluíam extorsão, roubos, homicídios, estupros e tortura) e que o fenômeno fosse fruto do descaso e corrupção dos governantes e donos de terra.

Os cangaceiros eram admirados pelos seus métodos de sobrevivência, de forma nômade, o senso de justiça social e a coragem de enfrentar políticos poderosos muitas vezes em desvantagem bélica.

2.CONTEXTO HISTÓRICO: CANGAÇO COMO MOVIMENTO SOCIAL

Que o cangaço se tornou historicamente uma identidade do nordeste é impossível negar, mas o que envolve o surgimento desse movimento no final do século XIX possui mais significado do que apenas um grupo organizado. Sua criação envolvia problemáticas sociais silenciadas pelo poder público naquele período.

Segundo Santos (2018), o cangaço era um movimento social armado, contextualizado por disputas políticas, por terras e de lutas pela honra. Tendo como área de abrangência a região semiárida do nordeste brasileiro (estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe).

Para melhor entendermos essa situação precisamos voltar no tempo e ver o que desencadeou esse movimento social. Durante a época do século XIX e início do século XX, tínhamos de um lado os coronéis que segundo Santos (2018, p.5),“ eram autoridade máxima, tinham poder inclusive sobre as autoridades locais, que não ousavam enfrentá-los”. Do outro lado, temos as pessoas que tiveram suas vidas determinadas como “livres” pela Abolição da escravatura em 1888, adquirindo serviços como jagunços, capangas e vaqueiros. Funções essas que faziam dos mesmos semi-servos (FACÓ, 1996) de seus senhores.

É válido ressaltar que durante o século XIX, além da Abolição da escravatura tínhamos a existência da Evolução Industrial que ganhava expansão nos grandes centros urbanos. Porém, essa fase se localiza nos centros urbanizados, nas regiões interioranas não houve uma afetação da fase industrial, tendo em vista que encontrávamos pessoas desabrigadas, pois não eram mais “escravos” no papel, no entanto, não tinham terras, saúde, direitos e muito menos condições para viver fora dos poderes dos fazendeiros.

A evolução do Nordeste, nessa época, caracterizava-se por sua extrema lentidão, própria de uma sociedade em estágio econômico seminatural, com uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semi-servo (FACÓ, 1996, p.14)

A concentração de terras no nordeste estavam nas mãos de uma minoria (coronéis/ fazendeiros), enquanto isso a grande maioria tinha fome, não possuíam saúde, eram analfabetos, tinham que enfrentar as adversidades do clima local, com constantes períodos de seca que não eram solucionados pelo poder local, resumindo, viviam em condições de miséria. E o pior, é que não tinham como reivindicar, pois não adiantaria falar mediante um coronel que podia lhe expulsar das terras ou até mesmo lhe matar. Segundo (FACÓ, 1996, p.26):

A emigração em larga escala se iniciou com a grande seca de 1877 a 1879, a qual deixou memória em toda a região, até os dias de hoje. Três anos seguidos sem chuvas, sem semeaduras, e colheitas, os rebanhos morrendo, os homens fugindo para não morrer.

O que restava para a população era emigrar para outro estado,como São Paulo, Amazonas, etc, para tentar uma vida melhor nas cidades que estavam cercadas pelas grandes indústrias e começar uma vida do zero ou adquirir o título de cangaceiro (a) e enfrentar frente a frente a iniquidade local. De toda forma qualquer uma das escolhas, o nordestino sempre levava consigo muita fé, cabeça erguida e coragem para enfrentar as adversidades da vida, porém, nem sempre obtinha um resultado satisfatório, Segundo (FACÓ, 1996, p.27):

Os deslocados — em geral, vaqueiros, moradores, pequenos proprietários — em parte conseguem embarcar para fora do Estado (cerca de 55.000 pessoas), em parte morrem de fome e enfermidades nos subúrbios de Fortaleza ou nos caminhos dos sertões (somente nos subúrbios de Fortaleza cerca de 57.000 pessoas).

Uma das figuras que mais se destacaram entre o cangaço foi Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, o rei do cangaço. Sua história começou quando o mesmo acusou uma família de roubar bodes da sua propriedade, começando assim, uma rivalidade entre duas famílias. Segundo Santos (2018, p.6):

Lampião formou seu bando com dois irmãos, primos e amigos, cujos integrantes variavam entre 30 e 100 membros, e passou a atacar fazendas e pequenas cidades em cinco estados do Brasil, quase sempre a pé e às vezes montados a cavalo durante 20 anos, de 1918 a 1938. Lampião roubava comerciantes e fazendeiros, sempre distribuindo parte do dinheiro com os mais pobres. Grande estrategista militar, Lampião sempre saía vencedor nas lutas com a polícia, pois atacava sempre de surpresa e fugia para esconderijos no meio da caatinga, onde acampavam por vários dias até o próximo ataque.

Junto ao seu bando existia a presença de mulheres, que dentre uma delas podemos citar, a primeira a participar de um bando, Maria Gomes de Oliveira, mais conhecida como Maria Bonita (companheira de Lampião). Segundo Câmara (2015, p.59):

Não era fácil ser cangaceira; optar pela clandestinidade violenta; viver escondida, camuflada e alerta em meio ao mato seco e bravio do semiárido; sem luxos nem higiene e sem segurança no porvir; parindo nos matagais e ocultando os restos dos partos sob o solo poeirento e causticante.

3 SÉRIE CANGAÇO NOVO

A série Cangaço Novo foi produzida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video e lançada no dia 18 de agosto de 2023. Com direção de Fábio Mendonça e Aly Muritiba, é protagonizada pelo ator Allan Souza Lima, que interpreta o mocinho Ubaldo, um bancário que mora em São Paulo, mas que se envolve com uma gangue do sertão cearense.

Até o momento foram lançados oito episódios de uma hora de duração cada, encerrando a primeira temporada e confirmada a segunda para 2024. Não é a primeira vez que o cangaço é representado na TV, o filme Cangaceiro de Lima Barreto (diretor homônimo do famoso escritor) é dono de um longo legado, que influenciou obras como: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, cuja “continuação” O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968) foi exibida em mostras cinematográficas, e Bacurau (2019), do renomado diretor Kleber Mendonça Filho.

3.1 ANÁLISE DOS EPISÓDIOS 1 e 2

O primeiro episódio da série Cangaço Novo, intitulado O peso da Herança, é voltado, como de praxe, para a parte introdutória da série, onde o personagem principal chamado Ubaldo (Allan Souza Lima) descobre que tem uma herança e se dirige ao nordeste em busca dos seus bens.

A primeira cena inicia já com um dos principais signos de nordestinidade: a religiosidade, mesmo se tratando de um momento fúnebre, perdurou a característica religiosa nordestina.

Como é uma série sobre uma espécie de novo cangaço no Nordeste, torna-se fundamental vincular a Lampião e seu bando, já que segundo Azevedo (2011) uma das características de Lampião era a sua relação com a religiosidade, já que mesmo se valendo da sua violência característica, o chefe do cangaço nunca se desvinculou da sua religiosidade.

Ainda segundo Azevedo (2011) os cangaceiros eram pessoas com origens humildes no sertão e mantinham fortes laços com a religiosidade, venerando os santos protetores. O ponto anterior converge com a maneira que foram construídos os personagens da série, sempre abordando a questão da religiosidade.

Em um dado momento do primeiro episódio, fica explícito outro ponto, digamos, identitário nordestino: a masculinização da figura feminina como forma de se impor respeito. A personagem Dinorá (Alice Carvalho) é irmã do Ubaldo e a sua história na trama nos remete a personagens masculinizados em outras produções audiovisuais.

Outro ponto bastante importante a ser pontuado é a violência do grupo criminoso, seja nas ações de assaltos a bancos; seja entre eles próprios. A violência, segundo Sousa e Paiva (2016) é um dos signos de nordestinidade mais presentes nas produções audiovisuais sobre a região nordeste.

No segundo episódio intitulado Promessa é Dívida, para além dos pontos levantados anteriormente sobre o primeiro episódio como formas de representação nordestina, a paisagem seca permanece sendo uma das principais referências do Nordeste. Ainda segundo Sousa e Paiva (2016) essa imagem da seca é fruto da representação do Nordeste como uma região maltratada pela natureza.

Em ambos episódios (1 e 2) segue uma espécie de padronização da abordagem nordestina. Segundo Paiva (2014) o cinema brasileiro frequentemente foca em representações que destacam a figura do nordestino como um protagonista enfrentando desafios significativos em sua vida, incluindo adversidades como dor, fome, miséria e morte.

É significativo que nos dois primeiros episódios siga, de certo modo, essa padronização da representação nordestina, mesmo se tratando de uma produção de 2023. Segundo Azevedo (2011), a concepção do senso comum sobre a região nordestina pode ser resumida a partir dos aspectos da seca, do Lampião e Maria Bonita e, obviamente, a questão religiosa. Mesmo que implicitamente, nos episódios 1 e 2 foi possível perceber os aspectos mencionados no parágrafo anterior.

3.2 ANÁLISE DOS EPISÓDIOS 3 e 4

O terceiro episódio da série Cangaço Novo, intitulado Meu nome é Ubaldo Vaqueiro, revela uma virada marcante na trama, destacando a transformação de personagens e o conflito interno dentro do bando de cangaceiros. Neste episódio, o protagonista, Ubaldo, reencontra uma amiga de infância, Leinneane (Hermila Guedes), cujo marido é candidato a prefeito. Esse reencontro estabelece uma ligação importante entre Ubaldo e o mundo exterior ao cangaço, evidenciando sua luta entre o passado e seu presente como cangaceiro.

O desenvolvimento dos personagens é fundamental neste episódio. Leinneane, agora casada com um político, representa o contraste entre a vida de Ubaldo no sertão e o mundo urbano e político que ela agora faz parte. A complexidade de Ubaldo é ressaltada, já que ele se encontra dividido entre dois mundos aparentemente incompatíveis.

A trama evolui com a tensão crescente no bando de cangaceiros. O planejamento de um próximo assalto quase termina em tragédia devido ao amadorismo do grupo. Isso desencadeia a revolta de Ubaldo, que emerge como um líder mais pragmático e calculista. A luta intensa entre Ubaldo e Ameaço simboliza a transformação na dinâmica do bando. A partir desse ponto, Ubaldo estabelece novas regras: "se quiserem dinheiro de verdade, deverá ser do jeito de Ubaldo: sem matar e sem morrer."

O episódio aborda temas de transformação e conflito, tanto a nível individual quanto coletivo. A evolução de Ubaldo de um membro relutante do bando para um líder mais racional e pragmático é evidente. Ao mesmo tempo, o conflito interno no grupo de cangaceiros se intensifica, criando uma dinâmica de luta pelo poder e divergência de métodos.

Em conclusão, o terceiro episódio de Cangaço Novo marca um ponto de virada na série, com mudanças significativas no desenvolvimento dos personagens e na trama. A análise desses elementos revela a complexidade da narrativa e dos temas subjacentes à série. A transformação de Ubaldo e o crescente conflito no bando prometem continuar a cativar o público e aprofundar a exploração do cangaço como um movimento social e cultural no contexto histórico do nordeste brasileiro.

O quarto episódio, intitulado "O Preço da Herança", dá continuidade ao enredo, explorando a evolução de Ubaldo e a dinâmica do bando de cangaceiros. Neste episódio, Ubaldo está determinado a profissionalizar o bando, reconhecendo a necessidade de melhorar suas habilidades e métodos para atingir seus objetivos financeiros. Esse desejo de eficiência representa uma notável transformação em relação ao amadorismo que caracterizava o grupo no início da série.

Além disso, o episódio introduz uma reviravolta emocionante com o lance ousado de Dinorá no leilão, oferecendo 1 milhão de reais para evitar que a família perca suas terras. Esse acontecimento coloca o dinheiro no centro da narrativa, destacando sua importância tanto para a família quanto para o bando de cangaceiros. O episódio levanta questões intrincadas sobre o uso de recursos obtidos a partir de meios questionáveis, bem como os dilemas morais enfrentados por aqueles que buscam preservar seu patrimônio.

Paralelamente, a personagem Dilvânia surge como uma figura compassiva e solidária, acolhendo as famílias despejadas pelo leilão e criando uma comunidade no terreno dos Vaqueiros. No entanto, essa ação benevolente desperta ódio no jogo político local, revelando as tensões sociais e políticas da região. Este episódio continua a explorar temas de transformação, profissionalização e dilemas éticos, enquanto a série aprofunda o contexto social e cultural do cangaço no nordeste brasileiro. A análise desses elementos contribui para uma compreensão mais profunda da série Cangaço Novo e de como ela aborda questões complexas relacionadas à luta pela sobrevivência e justiça no sertão.

3.3 ANÁLISE DOS EPISÓDIOS 5 e 6

O quinto episódio tem por título “Viver é perigoso”, traz durante seu momento inicial uma memória de Dinorá, com seu falecido pai. Trazendo a lembrança da devoção cristã (reza em forma de agradecimento pela comida na mesa). De acordo com Azevedo (2011, p.1143),”o caráter popular da religiosidade no nordeste no período do cangaço é uma representação de memória coletiva, ou seja, uma manifestação supersticiosa e vulgar de crenças”.

Além disso, Dinorá relembra o seu impedimento, por ser mulher, de pegar em uma arma (evidenciando as ideias machistas daquela época), no qual o seu pai pronuncia a seguinte frase: “O que você está fazendo, Dinorá? Isso não é brinquedo de menina não” e lhe dá um tapa na cara. Toda essa passagem de lembranças são retratadas em preto em branco e fazem uma transição para os dias atuais de Dinorá, com tonalidades nítidas. Segundo Câmara (2015, p.67):

O século XX surgiu em meio ao contexto vitoriano de passividade feminina, no qual o ideal do ser mulher era focado no afã de estar casada e de ser mãe, cabendo a ela a função afetiva, o cuidado no gerenciamento da casa e na educação dos filhos

Dentro dessa transição de Dinorá criança para a vida adulta, traz à tona o sonho dela de pegar em uma arma e agir como cangaceira e ter a ideia repudiada pelo seu pai, e atualmente conseguir atuar no bando, utilizando a arma de seu finado pai, como uma das líderes juntamente com seu irmão Ubaldo.

As cenas evidenciam as estratégias que o cangaço novo utilizava para saquear os bancos (agindo sempre em equipe, ou os famosos bandos como eram chamados antigamente) e eliminar os policiais de sua visão, para conseguir efetuar o plano completo, eles causavam terror e medo entre os moradores da região, onde estavam assaltando.

Porém, eles não machucavam as pessoas e em uma de suas passagens é pronunciado a seguinte frase “pessoal, a gente está roubando o banco e não vocês” e jogavam alguns “bolos de dinheiro” para quem estava presente na cena do crime. Mostrando que eles estavam do lado do povo, que não queriam roubar o pouco que o pobre tinha, mas sim fazer um reajuste com os grandes grupos (bancos) que detinham dinheiro e que roubavam as terras e pertencer da população que não conseguiam pagar suas dívidas.

O quinto episódio ainda retrata os cangaceiros do novo cangaço se escondendo nas matas do sertão logo após o assalto, para não serem encontrados pelas autoridades, remetendo assim as histórias contadas sobre os antigos cangaços que se reuniam na caatinga para se esconderem dos policiais. Segundo Azevedo (2011, p.1145):

O estilo de vida quase-nômade dos cangaceiros dava a eles um grande poder de mobilidade e sagacidade para escaparem das forças do Estado – quando as forças policias se opunham aos cangaceiros, fortalecido pelos vínculos de proteção e pelo conhecimento profundo das regiões de caatinga do nordeste brasileiro

A cena retrata eles escutando através de um rádio as notícias sobre o roubo que efetuaram, como também mostra as desavenças entre os próprios cangaceiros do bando. Outra fase mostrada no mesmo episódio são as pessoas desalojadas devido às autoridades que leiloaram suas terras e ficaram sem moradia e sem sustento, buscando refúgio nas terras pertencentes ao bando, ao redor da igrejinha. De acordo com Azevedo (2011, p.1145):

A realidade política e social no nordeste no período do cangaço era bem diversa de hoje (embora muitas relações ainda subsistam, sobretudo as relações de poder local e a pobreza de parte significativa da população), a precárias condições de vida nas quais se encontrava uma grande maioria de sertanejos desvalidos de todos os cuidados das autoridades competentes, o chamado banditismo social configurou-se como uma forma, de resistência.

Durante a trama, é mostrado o descontentamento da população com as autoridades políticas, fazendo com que a população (que vive à margem da sociedade) se junte em prol de lutar pelos seus direitos contra os políticos desonestos que se utilizam do poder para atacar as pessoas através da não viabilização de políticas públicas para ajudar a comunidade.

Essa parte da série mostra como acontecia antigamente e como se perpetua nos dias atuais as desavenças entre o pobre (grande maioria da população) e os ricos que representavam a minoria que tinha poder financeiro por serem donos do poder político, policial e de terras, segundo Santos (2018, p.6):

[...] muitos dos nordestinos que viviam nas regiões mais isoladas do semiárido, se revoltavam contra as exigências da classe dominante (coronéis), que queriam fazer valer seus interesses em detrimento de valores humanos.

Como também mostra os contrabandos políticos que defendem suas causas em detrimento das causas sociais, buscando sempre se manter no poder local. Evidenciando assim, as lutas constantes entre os cangaceiros e os políticos (autoridades, que antigamente eram representadas pelos coronéis).

No sexto episódio, que tem por título “Tudo é política”, traz novamente lembranças do passado, onde os vaqueiros que participavam do cangaço se reúnem e cantam durante as expedições no sertão cearense. Mostrando também as relações entre os candidatos políticos e os cangaceiros em troca de apoios financeiros para a candidatura. Evidenciando, assim, que os políticos só consideram desfavorável o cangaço porque o mesmo não lhes remete nenhum benefício próprio, mas sendo ao contrário, fecham os olhos para as iniquidades do bando.

Outra característica forte presente nas cenas é a valorização da família em detrimento de outras escolhas, na qual o sertanejo está sempre em busca de prezar pelos valores morais e seus princípios que foram herdados de geração para geração. De acordo com Câmara (2015), o sertanejo, embrutecido por suas condições desfavoráveis de sobrevivência, no que tange à conduta social, entregava-se às suas emoções instintivas quando o assunto era “lavar a honra".

Essas cenas sempre trazem um contraponto entre passado e presente, mostrando que na história nordestina as relações de desentendimento e apoio entre o cangaço (vaqueiros) e autoridades continuam as mesmas.

3.4. ANÁLISE DOS EPISÓDIOS 7 e 8

No penúltimo episódio da série, inicia-se com um sonho em que um personagem devaneia no meio do sertão, pegando água num açude e carregando num jumento. Ele encontra um revólver “38” e pega a arma. Toda a cena é numa fotografia preto e branco, remetendo aos anos 30.

O uso recorrente de flashback ou sonho na narrativa, como uma interrupção de uma sequência cronológica intercalada de acontecimentos ocorridos anteriormente. Segundo Paiva (2015), “no cinema brasileiro, esse recurso técnico é sempre usado para voltar ao passado. No caso das narrativas sobre o Nordeste e sua gente, a utilização deste recurso auxilia também na manutenção de uma imagem obsoleta, em que o Nordeste sempre é representado como espaço da saudade e da tradição”.

Dinorá sempre posta como uma mulher masculinizada, é colocada como digna de dor e sofrimento como as outras mulheres ao sofrer pela perda do namorado. A figura onipresente do Senador, uma figura da política nacional e pai do prefeito da pequena cidade fictícia cearense Cratará, expõe a influência de políticos poderosos que mandam diretamente nos seus currais eleitorais, inclusive no domínio do judiciário, representado na cena que em que o promotor é obrigado a prender Ubaldo sem provas e uma inspetora da polícia civil é demandada a fazer as investigações exclusivas desse caso.

A rixa entre facções é predominante, principalmente quando a gangue liderada por Ubaldo vai cometer mais um assalto a banco e quatro ex-integrantes ficam de fora. É exposto muita violência e um banho de sangue entre as facções. Chacinas são frequentes no sertão e a série expõe isso de forma bem gráfica, com muitas cenas de morte com tiros, facadas, decapitações, como eram feitas na época de Lampião nos idos da década de 40.

Ubaldo usa a imprensa para difamar a imagem do prefeito e consegue manipular, de certa forma, a opinião pública. É possível observar nos discursos inflamados a polarização que nos rodeia desde 2018, principalmente nas cenas do comício de reeleição do prefeito, instigando a população a se armar e promovendo o ódio ao inimigo.

No último episódio, o partido de Paulo, candidato a prefeito pela oposição de um partido supostamente de esquerda, faz campanha com dinheiro público comprando votos em troca de botijão, cadeira de rodas, muletas, carrada de areia e outros objetos. É nítido a política assistencialista. Um ponto a ser notado é que no sertão, não é muito clara a diferenciação entre esquerda e direita como é nos demais polos do país, pois ambos os candidatos são adeptos dessas práticas corruptas.

O machismo e a violência contra a mulher também acontece com Paulo, candidato supostamente da esquerda, que ameaça bater a agride verbalmente a esposa, coordenadora de sua campanha, desmistificando que homens da esquerda não podem ser tóxicos e abusivos.

Nessa análise, evidenciamos que a mulher nordestina, quando não mostrada de forma masculinizada ou vulgar, é sempre submissa ao homem e incapaz de empreender suas vontades, exceto nos casos de Dinorá e Leinneanne, que apesar de terem momentos de submissão, sempre se demonstram fortes e donas de si, conforme citação abaixo:

“[….] suas principais atividades seriam, basicamente, ajudar os maridos e/ou filhos a lutarem pela sobrevivência requerida no nordeste devido, principalmente, ao clima seco, sem chuvas e à situação econômica precária, ancoradas na religiosidade e na passividade. Essas representações do universo feminino seriam produzidas, segundo as teorias feministas, a partir de um “olhar masculino” que reforça a existência de uma postura patriarcal no cinema.” (PAIVA, 2015. p. 17)

O forró é colocado como o gênero musical predominante para os personagens da série, reforçando o estereótipo que no nordeste só se ouve forró. Até parece que os personagens não têm acesso a tecnologias que lhes permitam ouvir outro gênero. Outro ponto importante a se destacar é a figura do vaqueiro como um ser quase místico ou heroico.

Em vários momentos da série, Ubaldo é comparado ao seu falecido pai, um destemido vaqueiro e justiceiro da região. A fé católica também é um ponto forte na série. No último episódio, tem uma cena em que uma igreja é incendiada por capangas do prefeito e são colocados como hereges, blasfemos pela população.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos pressupostos acima, na análise realizada da série Cangaço Novo, da Amazon Prime Video, com muita recorrência identificamos a presença de discursos “nordestinizadores”, tais como a violência como uma forma de conduta, a mulher nordestina submissa, a mulher-macho, o vaqueiro como herói, e o do migrante, que vê a cidade grande como a personificação de esperança para encontrar uma vida melhor, longe das intempéries do sertão.

Predominantemente, nesta série e em outros produtos audiovisuais nacionais, identificamos a utilização de uma paleta de cores que vai do laranja ao marrom, ofuscando nossa atenção para o verde da vegetação, além do uso de uma concepção de maquiagem e figurinos que dão ideia de sujeira, oleosidade e pobreza, que corrobora para a construção do imaginário coletivo como se o nordeste fosse apenas isso, como se não houvesse beleza.

Perdurou durante a série o cenário árido, as imagens de um nordeste carente de infraestrutura, assim como, uma região pobre e vítima da falta de vontade política no que tange às questões relacionadas às condições mínimas de sobrevivência da população da região. As imagens de vacas mortas em meio ao clima seco segue a “norma padrão” das produções audiovisuais quando ambientadas no nordeste, incutindo no telespectador a imagem de uma região parada no tempo, já que essa forma de abordar o nordeste pode ser encontrada em produções dos anos 60.

Para findar as discussões tratadas neste trabalho, conclui-se que produções audiovisuais feitas por diretores e roteiristas que não são nordestinos de origem, sempre tendem a ser estereotipadas, colocando uma certa idealização do estúdio ou emissora de quem a produziu, como é o caso da série analisada em questão. Mesmo retratando alguns pontos com verossimilhança, como por exemplo as questões políticas e a violência cometida nos confins do sertão, ainda assim houve um reforço negativo em estereótipos como se no nordeste só houvesse miséria, como se as mulheres ou fossem masculinizadas ou prostitutas.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Alexander Willian. Religiosidade no nordeste brasileiro na era do cangaço: prospecção de parâmetros de estudos a partir da biblioteca digital brasileira de teses e dissertações (BDTD). 5° Colóquio de História,2011.

CÂMARA, Yls Rabelo; CÂMARA, Yzy, Maria Rabelo. Maria Bonita e Dadá: uma breve releitura do cangaço por meio da presença determinante do elemento feminino. Revista Entrelaces, 2015.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas.4° Ed.Editora Civilização: Rio de Janeiro, 1996.

SANTOS, Wilson Alvares dos. Cangaço: um movimento social. Revista Caribenha de Ciências Sociais, 2018.

SOUZA, Neucimeire Santos de; PAIVA, Carla Conceição da Silva. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DO SEMIÁRIDO ATRAVÉS DOS SIGNOS DE NORDESTINIDADE PRESENTES NO FILME REZA A LENDA. Congresso Internacional da Diversidade do Semiárido, Campina Grande, ano 2016.

PAIVA, C. C. da S. Mulheres nordestinas, sujeitos ou objetos?: análise da representação feminina em quatro filmes brasileiros da década de oitenta. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas-Unicamp, 2015.

Patrick Sousa, Antônio César de Lima PEREIRA, Déssyca Aparecida da Silva BARBOSA, Lana Krisna de Carvalho MORAIS e Marília da Silva ROCHA
Enviado por Patrick Sousa em 28/10/2023
Código do texto: T7919313
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