Roteiro esfumaçado (publicado originalmente em 9/9/2023)
Há os magníficos roteiros, os razoáveis, aqueles surpreendentes, chinfrins, preguiçosos, horrorosos. ‘Jaula’ (2022, Netflix) se enquadra no ‘preguiçoso’. É fácil explicar. Em determinado instante, o simples gesto de um dos personagens, combinado com a frase dita por ele, entrega, no meio da fita, todo o desenrolar final. O ar macabro acaba por dar lugar à porção pretenciosa do enredo. A história mira em Paula e Simon. Ela, 42 anos, luta para engravidar e faz, escondida do marido, tratamento.
Numa noite, encontram vagando na estrada a pequena Clara. Ao levá-la ao hospital, descobrem antecedentes, dentre eles que a menina se impõe, com riscas de giz, limites por onde andar. A criança vai passar um tempo com o casal a ver se consegue se adaptar, enquanto a polícia tenta desvendar os mistérios dela. Aos poucos, com ajuda da psicóloga, há progressos, ainda com o giz atuando. O instinto materno fala mais alto, e as intercorrências que começam a sacudir a rotina da família fazem com que a ligação entre Paula e Clara seja cada vez mais umbilical, paralelamente com Simon cabreiro – confesso que as cenas com cacos de vidro me apavoraram.
Na metade a coisa degringola. Se o espectador for esperto, precisará de esforço zero a desvendar o bastidor da escuridão. Pena que a sombra maligna do suspense seja feita de fumaça, que engole o script daí em diante e, por isso, a graça se perca. Não revelarei o caso em que o longa-metragem se baseia, para não estragar o gosto do freguês.
Mesmo quando o roteiro vira chanchada misturada com terror arrogante (sabemos o desfecho, com entornos a serem ajustados com pequenos picotes), o público é levado a crer no oposto, como se estivéssemos cara a cara com a mais refinada produção de Hitchcock. Pode-se fazer alguns de trouxa com este engodo infantil. Tomara que não seja o seu caso, caro leitor. Duração: 107 minutos. Cotação: regular.