Sobre 'Nise' (publicado originalmente em 29/4/2023)
Nestes tempos nossos, onde expressões rasas como ‘mulher empoderada’, ‘nenhum direito a menos’ ou ‘ninguém solta a mão de ninguém’ me provocam alguns engulhos, ver ‘Nise: O Coração da Loucura’ (2015, Prime Video) contaminada em determinadas sequências, como quando a protagonista Nise da Silveira (1905-1999), grande nome brasileiro da medicina, vivida por Glória Pires, se refere a Carl Gustav Jung (1875-1961), seu professor e um dos maiores da psiquiatria, como ‘machista’, dói o fundo da alma.
No mais, a proposta do diretor Roberto Berliner e do grupo de roteiristas que compõe a trama é retratar a personagem num recorte: 1944, quando chega ao Centro Psiquiátrico de Engenho de Dentro (RJ) após passar anos presa e na clandestinidade por estar no Partido Comunista Brasileiro (era trotskista). Seu trabalho naquele hospital é a base da chamada ‘luta antimanicomial’ e da terapia ocupacional, setor desprezado por médicos na época. Ao assistir aos maus tratos que pacientes recebiam (eletrochoques, violência física), ela inicia sistema no qual internos – a maioria diagnosticada com esquizofrenia – se expressam pela arte, não mais se ‘entretendo’ com faxinas.
O ambiente claustrofóbico, sujo, do começo do filme, dá lugar a cenas abertas, claras, na medida em que os minutos passam. A atuação de Glória é alentadora – incrível como suas interpretações têm constâncias de ‘boas’ ou ‘ótimas’. A regularidade, no bom sentido, auxilia Berliner a firmar o padrão da obra, onde o que mais importa são os ‘doentes-artistas’ (todos, à minha surpresa, existiram de fato – eis minha confessa ignorância em desconhecer isso).
Da metade ao fim, Nise, um pouco, ‘desaparece’ propositalmente das cenas e dá lugar aos pintores-escultores, ajudados pelo crítico de arte Mário Pedrosa (Charles Fricks), que contribuiu à divulgação das atividades da médica. Os preconceitos pelos quais foi alvo – desconfiança dos colegas, principalmente, e apenas, devido à falta de conhecimento e base a lidar com enfermos – são abordados de forma menos letal do que supus, haja vista o que relato no começo do artigo. É esperado e louvado que o cinema nacional eternize estes ícones na telona. Deve-se seguir nesta trilha. Assim, pessoas como Nise estarão disponíveis às novas gerações. Duração: 106 minutos. Cotação: bom.