Tolkien usurpado

John Ronald Reuel Tolkien, J. R. R. Tolkien ou simplesmente Tolkien, foi o filólogo e romancista inglês responsável pela criação do épico de fantasia mais influente de todos os tempos, O Senhor dos Anéis. Uma obra rica e impressionante, foi pensada a partir de várias influências sociais, religiosas, místicas e linguísticas, tornando-se não só um marco da literatura de alta fantasia, mas também um ícone da cultura de massa da segunda metade do Século XX.

Após a morte de Tolkien, em 1973, os direitos autorais da obra foram reunidos sob seu espólio, cuja administração incumbia a Christopher John Reuel Tolkien, terceiro filho do falecido escritor. Ferrenho advogado da memória de seu pai, Christopher editou vários livros póstumos, com estórias inéditas e compilações de alguns de seus rascunhos sobre o mundo de Arda, os quais não haviam sido publicados durante a vida do autor.

Sua obstinação em manter a integridade da obra era notória, de modo que conseguiu afastar por décadas as propostas de mercantilização dos livros pela indústria do cinema e do marketing. Até meados da década de 1990, ele conseguiu, com sucesso, proibir a venda dos direitos a empresas e outros autores que queriam produzir adaptações, para desespero dos demais herdeiros.

Contudo, a situação começou a mudar após acordo para cessão dos direitos de uso d'O Senhor dos Anéis à New Line Cinema, que produziu a grande trilogia cinematográfica de mesmo nome (2001-2003). Se, por um lado, foi um estrondoso sucesso de vendas, também gerou críticas por parte dos puristas - para além das dificuldades de adequação dos livros ao cinema, o diretor Peter Jackson preferiu focar no lado comercial da ação e da aventura em detrimento dos nuances psicológicos, fantásticos e dramáticos da trama. Há quem menosprezasse a adaptação como um romance feito para adolescentes que ofuscou a mística da Terra-Média.

Todavia, é inegável que o trabalho de Peter Jackson difundiu o mundo criado por Tolkien para quem ainda não o conhecia - principalmente para as novas gerações. Eu mesmo me tornei um grande admirador da obra por facilitação dos filmes. Afinal, somente me lancei aos livros após ser incentivado pelos cinemas. E, embora as críticas sejam pertinentes, a adaptação não é ruim. A trama foi respeitada, o caráter épico da narrativa também. Diálogos e atuações são bem trabalhados.

Tudo começou a mudar com a ressaca que veio após o sucesso d'O Senhor dos Anéis. Em meio a disputas judiciais por direitos de distribuição e de uso da obra, os estúdios quiseram descer goela abaixo mais uma adaptação, desta vez d'O Hobbit. O que veio foi um gigantesco fiasco. Em mais uma trilogia, Peter Jackson produziu filmes infantis e cansativos, sem qualquer correspondência com o livro, que foram largamente criticados pelos especialistas e pelo público.

Não bastasse, com o falecimento de Christopher, em 2020, os herdeiros remanescentes autorizaram a venda de outra parcela dos direitos, desta vez à gigante Amazon. Agora, cederam-se os direitos dos apêndices d'O Senhor dos Anéis, relativos à Segunda Era da Terra-Média. Foi aí é que começou a produção da série que é transmitida atualmente na Amazon Prime, "Os Anéis do Poder".

Admito que já não esperava muita coisa. É praticamente impossível criar uma série para streaming baseando-se apenas nos apêndices. Ou os estúdios compravam o restante dos direitos (o que não aconteceu) ou os roteiristas quebravam a cabeça e inventavam uma história coerente com os escritos de Tolkien. No fundo, eu imaginava que algo bom poderia ser feito, pois o orçamento da série era praticamente infinito e as histórias da Segunda Era são muito ricas. Talvez um novo Game of Thrones nasceria, com uma trama envolvente e boa utilização da narrativa de fundo.

Lego engano.

Até a publicação deste post, somente três capítulos da série foram divulgados. Entretanto, já podemos antever a catástrofe que é a adaptação. Embora no quesito estética seja estonteante, todo o resto representa um ultraje à obra de Tolkien. Não tanto pela diversidade do elenco (o que é positivo), mas pela pobreza do roteiro; pela falta de profundidade dos personagens; pela absoluta incoerência das cenas. Tudo reforçado pelos clichês e diálogos quase infantis. Em suma, se criticaram a trilogia inicial de Peter Jackson como um romance adolescente, essa série poderia ser comparada àqueles livros coloridos para crianças.

O que se mostra mais estarrecedor é que a crítica massiva da audiência foi rechaçada pela produção, pelo meio artístico e pela mídia como uma "manifestação de racismo e misoginia", pois o público de Tolkien não estava acostumado com uma "narrativa mais inclusiva". Em um esgar de arrogância, preferiram menosprezar as críticas, que entenderam como sendo de pessoas com valores morais baixos.

Isso é muito característico da época em que vivemos. A elite intelectual e artística volta-se a tais agendas "inclusivas" e tudo se reduz a um suposto "problema estrutural" da sociedade, que deve ser corrigido.

Este parece ser o único objetivo d'Os Anéis do Poder (a pauta política e indenitária). Se pretendem reduzir a obra de Tolkien a isso, a um mero apelo por diversidade, deveriam, primeiro, relê-la. Segundo, reconhecer um trabalho ruim e não se esconder atrás dessas falsas virtudes. Por fim, desvincular o nome de Tolkien desse lixo narrativo, em respeito à memória do autor.

Ocorre que isso nunca vai acontecer. É muita ingenuidade esperar algo diferente numa época como essa...

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 12/09/2022
Reeditado em 12/09/2022
Código do texto: T7604398
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