AS AVENTURAS DE PI- UMA AVENTURA CABALISTA

 

“As Aventuras de Pi” (The Life of Pi), filme premiado com vários Oscars em 2013 (Melhor Fotografia, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Trilha Sonora e Melhor Diretor), conta a história de um garoto hindu chamado Piscine Patel, vulgo Pi, que procura justificar sua crença em Deus a um escritor ateu. Sua prova é a sua própria experiência, vivida em um naufrágio em alto-mar onde ele é o único sobrevivente, tendo que dividir o barco salva-vidas em que ele sobe com um incomodo compa-nheiro de viagem: um tigre chamado Richard Parker.

O filme, baseado em um romance de Yann Martel, é uma clara metáfora cabalística. Pi é um jovem hindu, filho do dono de um zoológico e de uma professora de botânica. Ele tem um certo espírito místico. Acredita piamente em Deus, e embora criado na crença dos hindus respeita o cristianismo e o islamismo, e não cultiva dogmas nem preconceitos religiosos. Pi acredita num Deus único que está presente em todas as coisas existentes no universo, em forma de luz.

Por isso Pi consegue ver no tigre Richard Parker, uma alma. Como se ele fosse um ser humano, mas apenas com uma conformação geométrica e biológica diferente. Pi pensa que se alguma forma de comunicação efetiva entre ele e o animal puder ser encontrada, então uma espécie de colaboração entre os dois poderá ser estabelecida, e a sobrevivência de ambos será possível, ainda que os dois estejam sozinhos no meio do oceano, sem qualquer possibilidade de socorro.

Uma das pistas que o romance, e por consequência, o filme, foi inspirado em temas cabalísticos, é nome do navio pelo qual a família de Pi deixa a Índia para imigrar para o Canadá. Trata-se de um navio de bandeira japonesa cujo nome é Tsimtsum.

Tsimtsum é um termo usado pelos cabalistas para explicar a estratégia usada por Deus para criar o universo material. Segundo essa tese, Deus, antes de criar o universo vivia uma existência negativa, no sentido de que Ele ainda não havia se manifestado no terreno das realidades detectáveis, ou seja, o mundo da matéria. Nesse estágio, anterior á criação do universo, Deus era pura energia, que, no entanto, não podia se manifestar porque nada existia naquele momento e toda energia, para se tornar manifesta, precisa de canais competentes para isso. Assim, Deus concentrou-se em um ponto de extrema densidade energética, que por não conseguir suportar tanta energia num espaço tão pequeno, explodiu. Foi o Big Bang, fenômeno que os cientistas acreditam ter dado origem ao universo. São os fragmentos dessa energia, em forma de luz, que estão na origem de todas as formas universais, inclusive nossos próprios corpos. Essa tese tem sido aceita nos meios científicos atuais, especialmente depois das descobertas feitas pelos estudiosos da chamada mecânica quântica, parte da física que estuda a origem da matéria universal a partir das ondas e partículas de energia.

A teoria do Tsimtsum é uma intuição do famoso rabino Isaac Lúria, (1534-1572). Segundo esse eminente cabalista, o ato de contração de si mesmo realizado por Deus para que o universo pudesse existir resultou na criação do espaço-tempo, criando um ambiente propício à criação. Espaço-tempo esse, que em termos de matemática pura tem paralelos muito próximos à função do número irracional Pi.

Durante a tempestade, Pi age como a criatura descrita nos textos cabalistas. Uma criatura em construção, à procura de um sentido para a própria vida.  O navio Tsimtsum é como a própria Arca de Noé. Quando ele afunda, Pi se vê sozinho em meio a um imenso oceano, sem saber como nem para onde poder ir. Exatamente como o próprio universo que saiu do Big Bang. Um caos imenso de energias sem controle que precisarão ser dominadas se ele quiser sobreviver. E para complicar ainda mais, está sozinho em um barco com um tigre feroz. Para começar precisa dominar e conviver com o tigre, que pode ser considerado o seu próprio ego, já que, segundo os ensinamentos da Cabala, é o nosso maior adversário.

Durante a viagem de Pi e do tigre Richard Parker em alto mar, é possível identificar diversas referências cabalísticas. ´É como se os personagens fizessem uma viagem pelas esferas da Árvore da Vida, onde adquirem conceitos necessários à uma vida profícua, capaz de suportar dores físicas e morais. Nesse sentido é preciso adquirir compreensão (a séfira Binah), sabedoria (a séfira Hockmah), capacidade de julgamento (séfira Gevurah), misericórdia (séfira Hesed), capacidade de projeção (séfira Hod), capacidade de apreciar a beleza (séfira Thiphered), conceito de eternidade (séfira Netzach), para adquirir a necessária fundação (séfira Yesod) que nos finalmente nos levará à Malkut, séfira que designa o Reino.

Até a antropofágica ilha onde eles aportam e passam algum tempo tem um significado bastante assente com os ensinamentos da Cabala, pois ela significa a propria humanidade que se cria e se auto-destrói, consumindo e vivendo da própria energia que ela gera, como mostra o símbolo hermético da serpente Oroboros.

Ao final de sua história, Pi revela para o seu entrevistador que existem duas versões da história e que ele deve escolher qual, para ele, é melhor acreditar: a que ele acabara de contar, repleta de significados, amor e milagres; e a outra, com fatos realistas e cruéis. Que é também uma proposição que tem muito a ver com os ensinamentos da Cabala, que vê o mundo como uma criação da nossa mente. Proposição essa que tem sido defendida pelos teóricos da física quântica ( a realidade só existe quando detectada pela nossa mente).

De acordo com Pi, uma história com a presença de Deus é a “melhor história” que pode ser contada. Acreditar na existência de Deus e da sua presença entre nós torna a vida mais rica e dá a ela um sentido. Nesse sentido, o universo é recriado a cada momento pela ação e pelo pensamento humano e é nesse sentido que cada ser humano é responsável pela Tikun, ou seja, a reordenação do Caos gerado pela própria Criação.  A escolha da melhor história é arbítrio de cada um: podemos escolher a visão de um mundo onde há apenas sofrimento e dor, ou descobrir o significado que todas as coisas têm. Porque afinal, esse significado somos nós mesmos que damos a elas.

Nesse sentido as aventuras de Pi podem ser vistas como a saga da própria humanidade na sua luta pela sobrevivência e pela construção de uma identidade, na qual a , a ciência, a arte e a religião (arquétipos que em seus desdobramentos constituem a Árvore da Vida) convivem como formas interpretativas não antagônicas, como modos distintos de apreender o mundo, conhecê-lo e amá-lo. Podemos escolher entre as diversas narrativas a que mais nos agrada, porque é assim que a nossa mente constrói a sua própria realidade.

Como disse Jesus de Nazaré, eminente mestre cabalista, podemos ocultar a luz que existe em nós (a nossa alma) sobre uma camada de desejos e ambições ou libertá-las das cascas (kelipots) que aderem a ela no decorrer das nossas vidas materiais. Você escolhe a melhor história.