Os filmes de Ken Loach e o mundo do trabalho

O cinema, que se firmou como arte nas primeiras décadas de 1900, é diversão e entretenimento; uma expressão cultural, uma forma de representar a história, uma fantasia e fatos reais. O cinema traz discursos e questionamentos. Além de distrair e animar, é capaz de influenciar pessoas, fazê-las se emocionar, pensar e refletir sobre questões importantes do cotidiano.

Muitos diretores não fazem cinema apenas para divertir, entreter. Utilizam a chamada Sétima Arte para questionar, denunciar, chamar a atenção ou abordar questões sociais que levam à reflexão sobre um tempo passado ou sobre a realidade atual. Marc Ferro (1992) afirma que “desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou ficção, que, desde a sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam ou glorificam” (FERRO, 1992, p. 13).

Ainda segundo Marc Ferro, “o filme tem a capacidade de desestruturar aquilo que diversas gerações de homens de Estado e pensadores conseguiram ordenar num belo equilíbrio. Ele destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo conseguiu construir diante da sociedade. A câmera revela seu funcionamento real, diz mais sobre cada um do que seria desejável de se mostrar. Ela desvenda o segredo, apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos” (FERRO, 1992, p. 86). Então, o cinema pode ser considerado uma ferramenta utilizada para impactar, para provocar mudanças.

Um dos cineastas que trabalha com essa ideia é o Kenneth Charles Loach (Ken Loach), que já produziu mais de 30 longas-metragens, com grande impacto social. Ele enxerga o cinema como uma ferramenta capaz de pensar o momento, fazer denúncias e promover transformações sociais. Durante uma entrevista ao suplemento Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, sobre o documentário “A Chama Vacilante” (The Flickering Flame, 1996), que registra os 17 meses da greve dos trabalhadores portuários de Liverpool (Inglaterra), ele afirmou que é preciso ter posição e escolher um lado: “Como cidadãos, como seres humanos, estamos envolvidos. Há um ditado inglês que diz que você não pode ficar neutro entre os bombeiros e o fogo. E às vezes, como acontece agora, é preciso ficar do lado do fogo” (KEN LOACH, 1997).

A formação marxista e a aproximação com os movimentos sociais e de trabalhadores fazem de Ken Loach um representante do cinema político e engajado, que o diferencia da maioria, principalmente do cinema hollywoodiano – do show business e das estrelas. “Acho que a maior parte do cinema contemporâneo é muito preocupada em ser ‘chique’” (KEN LOACH, 1997). Essa militância de Loach é levada para a telona e retratada em todos os seus filmes – muitos premiados pela crítica mundial.

O cineasta brasileiro Sílvio Tendler afirma que dentro deste viés do cinema político, “Ken Loach e o diretor Costa-Gavras são os grandes” (TENDLER, 2020). Segundo o professor adjunto do Departamento de Filosofia e Núcleo de Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Romero Venâncio, os filmes de Ken Loach são muito sensíveis, dotados de realismo, com foco em dramas sociais. Entre os temas trabalhados por Venâncio na UFS, estão Filosofia do Cinema e Teoria do Documentário. Também atua como professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema (PPGECINE).

Política e Trabalho

Pelas abordagens dos seus longas-metragens, retratando questões políticas, situações do cotidiano do mundo do trabalho e pela defesa de grupos minoritários e teoricamente mais fracos diante da força e opressão do capital e do Estado, Rogério Venâncio considera Ken Loach como o “cineasta do mundo do trabalho”.

A obra do diretor britânico é muito marcada por isso. Grande parte dela está centrada na abordagem e descrição das condições de vida da classe operária, da desestruturação do estado de bem estar social que provoca danos e sacrifica o trabalhador. Para exemplificar essa afirmação pode-se citar alguns filmes.

Os dois últimos (“Eu, Daniel Blake”, 2016; e “Você não estava aqui”, 2019), apesar de não fazerem parte das mesmas propostas e objetivos da indústria de massa do entretenimento, provocaram muitas discussões nesse final da segunda década do século XXI (2011-2020) no cinema mundial:

1) “De que lado você está?” (Which Side Are You On?, 1984) - Tem o enfoque na luta dos trabalhadores ingleses de uma mina de carvão. As experiências familiares dos mineiros são contadas através de músicas, fotografias e versos;

2) “Terra e Liberdade” (Land and Freedom, 1995) - Conta a história de um militante do Partido Comunista da Inglaterra (Dave). Desempregado e insatisfeito com os rumos da própria vida, junta-se aos grupos que combatiam os franquistas durante a Guerra Civil Espanhola;

3) “Pão e Rosas” (Bread and Roses, 2000) - É sobre uma greve de trabalhadoras precarizadas numa empresa na cidade de Los Angeles (Califórnia), nos Estados Unidos;

4) “Eu, Daniel Blake” (2016) - Aborda o desemprego, a relação entre os idosos e o mundo da informática, a saga em busca da requalificação profissional e as dificuldades para acessar a aposentadoria num país onde o estado de bem estar social está em decadência; e

5) “Você não estava aqui” (Sorry We Missed You, 2019) - Mostra as novas relações de trabalho do mundo neoliberal, onde a força de trabalho, no passado empregada e com direitos garantidos, passa para as atividades informais, com longas jornadas de trabalho, baixo comissionamento, sem direito a folga ou descanso e nenhuma garantia assistencial.

Nos seus filmes Ken Loach aborda, de forma séria ou cômica, e também equilibrada, questões sociais e políticas, que geram impacto e discussões. É um cinema para pensar o momento e discutir transformações sociais, que nem sempre são de fácil solução.

“O cinema dele é anticapitalista por natureza e o capitalismo em Ken Loach é uma tragédia”, afirmou o professor Romero Venâncio (2020), durante uma aula sobre a obra do cineasta, promovida pelo Centro de Estudos Karl Marx – Região Agreste, na sua página Facebook. “É o mais importante do mundo contemporâneo; o cineasta que mais representa hoje o que eu chamo de sociologia do trabalho. Ele é, sem dúvida, o cineasta do mundo do trabalho e a sua obra é muito marcada por isso” (VENÂNCIO, 2020).

Trajetória

Ken Loach completou 85 anos no último dia 17 de junho de 2021. Nasceu em 1936, na cidade de Nuneaton, no norte do estado de Warwickshire – distante 170 quilômetros de Londres (Inglaterra). Estudou Direito na Universidade de Oxford, onde também fez teatro experimental. Logo após a academia, participou de espetáculos teatrais, como diretor e ator. No ano de 1961 passou a trabalhar na ABC Television, como assistente de direção.

Produz longas-metragens desde o final da década de 1960. Antes, de 1962 a 1969, trabalhou na British Broadcasting Corporation, a BBC de Londres, onde produziu e dirigiu diversos documentários e curtas-metragens para a televisão britânica, entre eles “Diário de um jovem” (Diary of a young man, 1964), “Cathy venha para casa” (Cathy Come Home, 1965), “Em duas mentes” (In Two Minds, 1967) e “A grande chama” (The Big Flame, 1968).

No cinema, estreou com “Kes” (1969), baseado no romance "A Kestrel for a Knave", de Barry Hines (1968). O filme conta a história de um menino de 15 anos (Billy Casper), que sofre abusos e humilhações causadas pela família e bullying na escola, e a sua amizade com um falcão, ao qual deu o nome de Kes. Também traz uma amostra da vida operária nas regiões mineradoras de Yorkshire. O filme recebeu duas indicações para a Academia Britânica de Artes do Cinema e Televisão (British Academy of Film and Television Arts), o BAFTA-1969: de Melhor Argumento e Melhor Realizador.

Ken Loach conquistou várias outras premiações, como duas Palma de Ouro no Festival de Cannes, por "Eu, Daniel Blake" (2016) e “Ventos da Liberdade” (The Wind that Shakes the Barley, 2006); três vezes o Prêmio do Júri, no Festival de Cannes, por “Terra e Liberdade” (Land and Freedom, 1995), “Chuva de Pedras” (Rain of Stones, 1993) e “Agenda Secreta” (Hidden Agenda, 1990); o Prémio de Melhor Curta-metragem, no Festival de Veneza, por “11 de Setembro” (11'9"01 September 11, 2002); Prêmio Bodil de Melhor Filme Não-Americano, por “Meu Nome é Joe” (My Name Is Joe, 1998); três vezes do Prêmio FIPRESCI, no Festival de Cannes, com os filmes “Terra e Liberdade” (1995), “Riff-Raff” (1990) e “Black Jack” (1979); o Prêmio do Júri, no Festival de Berlim, por "Joaninha” (Ladybird, 1994); e o Prêmio OCIC, no Festival de Berlim, com o filme “De que lado você está?” (Which Side Are You On?, 1984); além do Leão de Ouro (1994), no Festival de Veneza, em homenagem à sua carreira no cinema.

Características

A trajetória profissional de Ken Loach foi influenciada pelo Free Cinema (movimento que durou de fevereiro de 1956 a março de 1959, no Reino Unido, integrando a onda de renovação do cinema inglês no período pós-Segunda Guerra Mundial. Nesse período, promoveu seis mostras de filmes, no National Film Theatre, em Londres); pela sua experiência nos bastidores da TV londrina e pela sua militância de esquerda. Produz filmes e documentários que incomodam, mas que são extremamente necessários para levantar discussões sobre desigualdades e injustiças sociais.

Na sua obra são observadas pelo menos sete características: 1) A pobreza em bairros operários e arredores londrinos; 2) Conflitos familiares por questões sociais (alcoolismo, concepção classista de família); 3) Crise do estado de bem estar social (encena a sociologia do trabalho nos filmes); 4) Ascensão do liberalismo e a ausência do Estado nas políticas públicas; 5) Conflitos com a Irlanda (ele sempre foi simpático aos católicos irlandeses); 6) Migração e vulnerabilidade; e 7) O mundo do trabalho capitalista e suas contradições (representa a sociologia do trabalho a partir da classe trabalhadora).

Durante a mesa-redonda “O Cinema como Ferramenta Política”, no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, realizado em dezembro de 2020, pelo canal do Youtube da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal (Secec), o vencedor da Palma de Ouro de 2016 afirmou: “Estamos vivendo tempos de exploração. O que o cinema pode fazer sobre isso? Podemos tentar falar a verdade, tentar fazer perguntas que façam o espectador chegar na raiz destes problemas. Não queremos apenas mostrar uma pessoa desempregada sofrendo, e sim questionar o porquê desta pessoa estar desempregada” (KEN LOACH, 2020). Ele disse, também, não ser possível separar cinema de política e de ideologia. “Para poder contar uma história, para entender as pessoas, é preciso entender o contexto em que elas vivem. E você não entende o contexto sem entender a política sob a qual elas estão submetidas” (KEN LOACH, 2020).

Conclusão

O cinema político e sempre atual de Ken Loach está sempre pronto para colocar na berlinda aqueles temas que incomodam e agridem a sociedade, mas que nem sempre são levados à discussão mais ampla. Filmar e lançar isso para o público é a forma que o cineasta encontra para mostrar as mazelas de um Estado que não assiste mais os seus cidadãos; e de um modelo econômico que oprime e segrega trabalhadores. Esse cinema serve para mobilizar a sociedade e fazer com que tais temas entrem na ordem do dia, provoquem indignação e reflexões que levem essas verdades a serem discutidas mais abertamente.

Para ele, o cinema engajado, realista, objetivo e sem maquiagem, tem o objetivo de buscar a liberdade das ideias e incentivar o enfrentamento às formas de opressão das populações menos privilegiadas e maltratadas pelo Estado e por toda essa onda negativa provocada pelo projeto neoliberal que tomou conta do mundo. Se não resolve o problema, pelo menos Ken Loach tem a esperança de que os seus filmes levem o público a se indignar e reagir. “Há dois motivos para a esperança. O primeiro é que os povos sempre resistirão e alguém sempre lutará. O segundo é que vivemos em um sistema que não pode continuar por mais tempo (KEN LOACH, 2019).

BIBLIOGRAFIA

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VENÂNCIO, Romero. Centro de Estudos Karl Marx – Região Agreste https://www.facebook.com/centrokarlmarxagreste/.