A negociação do delírio (publicado originalmente em 1/8/2020)
Ingmar Bergman não me larga. Ou vice-versa. Ao assistir a 'A Hora do Lobo' (1968) fiquei abismado e em choque. Impressionou-me sobremaneira o modo de como o diretor tem a consciência do onirismo em seu trabalho e especificamente aqui o espelho de sua obra impacta o espectador.
Em 68 o sueco já tinha mais de 20 anos de estrada e conseguiu convencer a sua musa Liv Ullmann – que estava grávida dele – a filmar uma história meio macabra. O roteiro original ela recusou. Bergman, então, manobrou as linhas e deturpou a trama, deixando-a 5% mais leve. Liv, então, topou.
'A Hora do Lobo' trata de um pintor introspectivo e difícil, Johan (Max von Sydow, que 5 anos depois estrelaria 'O Exorcista'), e sua esposa, Alma (Liv). Desde o início da fita sabemos que a abordagem é encenada, reconstituição de um caso tenebroso, onírico.
Alma 'conta' para o diretor que o marido a abandonou, deixando-a grávida de 8 meses, sem esperança e expectativa. Aí entramos no script. Johan tem alguns medos complicados de se decifrar, e a insônia o perturba a cada dia.
Para ele, dormir à noite é perigoso, principalmente na tal 'hora do lobo', momento crucial onde muitas pessoas morrem, mas também outras tantas nascem.
As aparições de figuras estranhas no decorrer do longa – a criança na pescaria, que o morde; a idosa que destroça o próprio rosto; vizinhos de comportamento no mínimo insólito etc – são parte dos pesadelos do pintor ou há um complô para deixá-lo atordoado, ou assassiná-lo? Alma contribui a tudo isso ou é só uma vítima?
Bergman usa ingredientes comuns em suas fitas – solidão, ausência da religiosidade, o ocaso da existência, paranoia – e dá um banho de direção, fotografia e roteiro. O depoimento final de Alma é o estopim para muitas conclusões...
Afinal de contas, ficamos sempre parecidos com os nossos companheiros? Chegamos a ter inclusive demências semelhantes? Pode ser que sim. Pode ser que não.
O que você, aí do outro lado, acha? A bela Ingrid Thulin ('Morangos Silvestres', 1957), está no elenco. Caso não se remexa com a fita, o errado é você, não a fita. Duração: 83 minutos. Cotação: excelente.