Cineautobiografia (publicado originalmente em 25/7/2020)
Alguns cineastas têm a magia de inventar estilos de filme. Um deles é este do título da coluna: a cineautobiografia. Federico Fellini foi mestre neste tipo de obra. Pedro Almodóvar, idem.
Seu trabalho mais recente, 'Dor e Glória', que concorreu aos Oscars de ator a Antonio Banderas e filme estrangeiro, é, talvez, o mais sentimental e amoroso.
Banderas é Salvador Mallo, cineasta em crise existencial e com fortes dores no corpo todo, principalmente nas costas. Ele recorda a infância pobre ao lado da mãe Jacinta (Penélope Cruz), quando descobriu os livros e morava em um porão.
O pequeno Salvador (interpretado pelo excelente estreante ator mirim Asier Flores) é esperto, inteligente e perspicaz. Ao rejeitar ir ao seminário para cursar a escola, começa a dar aulas a um jovem pintor analfabeto, que em contrapartida oferece seus serviços na casa de Jacinta.
O adulto Salvador tem em Alberto (Asier Etxeandia) seu contraponto. No passado, o filme 'Sabor', dirigido por Mallo e protagonizado por Alberto, foi criticado pela fraca atuação deste e a partir daí a amizade entre os 2 se rompeu.
Na excursão ao passado, Mallo revê decisões, primeiros amores e as melancolias que a atitude traz à tona. Desde sempre o cinema de Almodóvar aborda os mesmos pontos e a figura da mãe é sine qua non quando o assunto é o diretor espanhol.
Desta vez, porém, a personagem é menos esfuziante e mais sofrida, sorumbática. Ao não conseguir 'andar para a frente', ou seja, avançar o trabalho como diretor devido às dores nas costas, Mallo vê como solução arranjar-se com o que se foi e por meio dele tentar retomar o cotidiano ou até ilustrar a rotina com pessoas do passado.
Um caso é Federico (Leonardo Sbaraglia), o antigo caso amoroso destroçado pelas drogas. Almodóvar teve a sensatez de extrair do elenco atuações sutis, minimalistas. Desde Banderas, o melhor deles, até o pequeno Flores, passando aí por Cruz, Etxeandia e Sbaraglia, além da performance soberba de Julieta Serrano como a idosa Jacinta.
A sensação de finitude está presenta em todo o longa-metragem e a capacidade de 'Dor e Glória' encantar o público é imensa, inclusive no uso de Almodóvar da metafísica, ou metaficção, que permeia o filme inteiro e tem o ápice precisamente na sequência final.
Nessa metalinguagem, há alguma semelhança com o curta-metragem de Jorge Furtado 'O Sanduíche' (2000). Será que nem tudo é o que parece ou os delírios de Almodóvar quer nos contaminar? Duração: 113 minutos. Cotação: ótimo.