Reflexos sinceros (publicado originalmente em 11/7/2020)
Ingmar Bergman precisa ser descoberto pelas novas gerações. A constatação é importante, porque há o risco de ser deixado de lado pelos jovens preocupados com tecnologia e fãs da Marvel e 'O Rei Leão' (nada contra).
Hoje escrevo sobre 'Através de um Espelho' (1961), drama de alta dose psicológica com a pitada típica do diretor sueco de provocar reflexões sobre o limite da fé e da sanidade.
Uma de suas musas, Harriett Andersson, vive Karin, a moça frágil que é afetada por crises de loucura e passa alguns dias numa ilha distante com o pai, o irmão e o namorado. Ela tem visões e delírios.
Provoca na família a degradação de conversas cuja polêmica se encarna na alma de cada um, inclusive no parceiro Martin (Max von Sydow), médico e descrente. É fabulosa a sequência onde ele e David (Gunnar Bjornstrand), o pai, escritor frio e distante dos filhos, debatem numa canoa sobre os rumos da vida.
Há confissões e a demonstração de que o mínimo do cotidiano pode inverter a ordem de meros pensamentos, e com a gravidade de querer provocar danos irreparáveis, como a morte pelo suicídio.
David se sente culpado por abandonar os 2 filhos e nem conseguir conversar com o irmão de Karin, Fredrik (Lars Passgard), o adolescente tímido e sem autoestima. Bergman insere nos personagens conflitos que fazem com que o quarteto fique atado pelos nós da desconfiança, e mesmo Martin, teoricamente 'o de fora', está ali por algum motivo sensível: tentar dar uma estrada menos pedregosa a Karin.
Cada minuto de 'Através de um Espelho' é interpretado como se tudo tivesse lado oposto, precisamente como o reflexo de espelhos gigantes, onde a lupa aumentasse a desolação das pessoas.
Na suposta sedução de Karin a Fredrik, os irmãos não sabem aonde estão indo e quando ela se esvai pelos cantos, ele invoca a atenção do seu pai, e fica maravilhado quando o tutor lhe presenteia com algumas palavras de carinho.
A desestrutura da filha soa como a redenção da família. E Bergman insiste sempre na questão primordial: nos momentos mais decisivos, onde está Deus? Duração: 90 minutos. Cotação: ótimo.