TROY (2004) dir. Wolfgang Petersen
Adaptar os 15.693 versos em hexâmetro datílico da poesia épica grega Ilíada de Homero em um produto de entretenimento cinematográfico é sem dúvida uma empreitada de sucesso improvável. A enorme quantidade de informações; a complexidade imensurável dos personagens e suas motivações anacrônicas; as perspectivas políticas de cada governo e governante participantes. Todas essas propriedades são de assustar até mesmo o mais experiente dos realizadores. Porém, o roteirista David Benioff e o diretor Wolfgang Petersen encararam a audaciosa empreitada com uma naturalidade surpreendente, resultando em um produto final agradável, pra dizer o mínimo.
Em contraste com a atmosfera simbólica e mitológica do material fonte, somos apresentados a uma antiguidade palpável, regida pela celebração da guerra e a temência aos deuses, que aqui não interferem no curso dos fatos. A guerra entre os reinos unificados da Grécia e Tróia, cidade ilhada e emuralhada, que dura originalmente dez anos é resumida a algumas poucas semanas, deixando de fora todo o cerco infligido a cidade e suas implicações governamentais. Todas essas mudanças, a primeira vista abruptas, são pertinentes e sumariamente necessárias, pois elas dinamizam a narrativa, adicionam um certo grau de urgência, de grandiloquência a ela, nunca deixando a trama amornar e permitem que um foco condutor principal seja mantido, característica essa primordial para obras do subgênero épico de guerra histórico. Para aqueles que considerem o reduto das séries como a opção mais adequada, essa abordagem já foi utilizada e falhou com a recente Troy: Fall of a City de 2018, não só por sua produção desleixada e módica mas também por seus desvarios narrativos que desviam muito a série do tom epopeico almejado.
A película oscila entre duas facetas distintas contudo complementares do modo de vida militar da época: a guerra e o completo vazio interior que sua ausência proporciona nos monarcas, heróis, generais e soldados rasos, que experienciam a obsessão não só pela prática mas também pela filosofia inerente a essa arte. Mesmo aqueles que apreciam a vida familiar e a calmaria que a paz proporciona sentem-se deslocados quando confrontados com ela; É o caso de Heitor, referenciado inúmeras vezes no poema não como um grande guerreiro mas como um tranqüilo domador de cavalos, que constantemente declama seu estrito código de moral e ética, o que pode ser encarado como uma virtude ou um demérito da obra.
Todos os personagens se comunicam por meio de aforismos (textos curtos e sucintos, geralmente relacionados a uma reflexão de natureza prática ou moral), alguns deles muito sensíveis e bonitos, já outros agudamente deslocados, que incomodam brandamente devido a sua demasiada profusão, em detrimento de diálogos mais fluídos; o incomodo reside no desequilíbrio entre o pomposo e o eficiente e, isso faz com que os personagens sejam parcialmente bem desenvolvidos, todavia de uma maneira nada convencional.
Entendemos as motivações de Aquiles, líder dos Mirmidões, que busca a eternização de sua glória, a imortalidade de seu nome; de Heitor que busca a autonomia e a sobrevivência de seu país, de sua família e de seu povo; compreendemos Paris como um garoto mimado, inapto em calcular o custo de sua ação precipitada, pueril, tolo e apaixonado, mesmo sem dominar minimamente os meandros desse complexo sentimento; tomamos contato com o rei Priamo em toda sua benevolência e equidade, no entanto também presenciamos sua omissão no julgamento dos atos de Paris, o acolhimento complacente do filho mesmo que o preço seja as vidas de toda a população de Tróia e, finalmente, sua devoção cega a religião, sua crença no destino imutável que o conduz tanto à sua própria ruína, quanto à de seu povo.
Infelizmente a sonora maioria do personagens não consegue ser propriamente aprofundado devido as limitações temporais, contudo, a seção mais prejudicada é a dos casais. O relacionamento entre Paris e Helena é superficial, o que poderia ser relevado se o filme apostasse na personalidade imatura e paqueradora do príncipe, insinuando que Helena fora só mais uma conquista - ele efetivamente a trata como tal após seduzi-la, abandonando-a na maioria dos momentos - mas é um interpretação forçada, visto que essa informação não é apresentada de maneira convincente; já o romance disfuncional entre Aquiles e Briseis é substancialmente mais instigante, conversa intimamente com os sintomas de uma Síndrome de Estocolmo, no entanto, os dois não tem diálogos calorosos que justifiquem sua paixão voraz.
Apesar de todo o interessante contexto ideológico, é na representação das batalhas que esse filme encontra seu verdadeiro reduto, a começar pela fotografia bastante inteligível, tática, que promove a apreciação de cada plano, todos eles essenciais. A montagem trabalha em simbiose com a fotografia imprimindo um ritmo agradabilíssimo as cenas de combate e potencializando as já refinadas e estilosas coreografias. É assombrosa a quantidade de figurantes utilizados nesse longa-metragem - fazendo lembrar os clássicos do subgênero dos anos 50 e 60 como Spartacus (1960) e Ben-Hur (1959) - e o comprometimento dos mesmos, que nunca aparecem, mesmo em segundo plano, dispersos ou desajeitados. Intrigantes também são as estratégias adotadas por cada tropa, influenciadas pelos terrenos que cada exército ocupa, sendo os arqueiros de Tróia decisivos em numerosos momentos.
Os combates individuais são todos bem encenados e respeitam bastante as características individuais de seus combatentes. Destaca-se a díspar luta entre Menelau e Paris, que apresenta recursos visuais angustiantes, como a claustrofobia dentro do elmo com o POV (point of view pt. br. ponto de vista) e a câmera subjetiva que passeia pelos dois personagens a fim de enfatizar a imperícia de Paris e amplificar mais o peso dos vigorosos ataques de Menelau. A contenda entre Aquiles e Heitor se manifesta como um show a parte dentro da produção, uma fera irrefreável, enlutada e alucinada pela dor da perda contra o mais civilizado dentre os homens, demonstrando a desmedida superioridade do primeiro em relação a todos os outros guerreiros.
O espetáculo visual dos aspectos técnicos é indelével. As paisagens áridas; os interiores dos castelos ricamente adornados, suntuosos, recheados de ídolos de pedra opressores devido a amplidão; as túnicas reais, escudos, espadas e armaduras todas minunciosamente detalhadas, críveis, tangíveis aos olhos: as estruturas ciclópicas dos navios de guerra, das muralhas de pedra impenetráveis, do cavalo de engenhosidade ecoante pelos séculos.
A trilha sonora de James Horner se encaixa perfeitamente ao tom épico da obra, imprimindo um ritmo empolgante às cenas de batalha, fazendo sentir as perdas e as lamentações e sacramentando a eternidade dos atos cometidos em tempos tão longínquo. Horner geralmente é conhecido por ser um compositor formuláico, autorreferente mas aqui sua música atinge o pico de tudo que a fórmula pode entregar, sagrando-se como a melhor composição do maestro.
No campo das atuações temos assimetrias notáveis, entregas emocionais desiguais. O veterano Peter O'Toole (que vive Priamo) é quem de longe nos presenteia com a melhor performance, sua modulação vocal é ímpar e sua expressividade tocante fixam em nós uma imagem nítida de autoridade complacente, mesmo em momentos onde o roteiro não ajuda. Eric Bana também nos entrega uma performance sólida, sem muito espaço para exageros ainda que sustente muita densidade moral. Orlando Bloom, Diane Kruger, Rose Byrne e Sean Bean também são competentes, porém raramente faiscantes. Os destaques negativos ficam por conta do astro principal Brad Pitt (Aquiles) que em alguns momentos é capaz de exprimir sua raiva interior, seu espirito bestial, mas com méritos inconstantes assemelhando as vezes ao mármore inexpressivo das estátuas gregas; Brian Cox quase sempre soa um pouco canastrão, sua expressividade um tanto teatral e suas falas possuem aspectos de frases de efeito vazias.
Tróia não é um filme perfeito, longe disso, mas levando em conta a falta de criatividade, de ousadia do cinema atual, quisera eu que filmes tão imperfeitos fossem produzidos atualmente, filmes tão atrevidos, épicos tão eternos.