Sem escapatória (publicado originalmente em 4/7/2020)
Enquanto assiste a uma criança, a pediatra Amani pergunta: 'Será que Deus vê a gente?'. A criança chora de dor. Corta. Noutra cena, o médico Salim pede: 'Pode ligar a música'.
Alguém aperta o botão 'play' do celular e uma orquestra inicia os trabalhos. Salim está prestes a começar uma cirurgia e como não há material para a anestesia, suplica ao paciente que tente relaxar com a música clássica.
Corta. Mais uma sequência. Amani corre e entra numa salinha. Senta e chora copiosamente durante alguns minutos. Refaz-se e volta aos atendimentos.
Assim é o documentário 'A Caverna' (2019), um dos 5 finalistas da categoria do Oscar 2020. Em meio a ataques aéreos e bombardeios, o grupo de médicas em Ghouta, na Síria, luta contra sexismo sistêmico enquanto tenta cuidar dos feridos usando recursos limitados.
O diretor, Feras Fayyad, já tem cancha no prêmio: em 2018, concorreu com outro documentário, 'Os Últimos Homens em Aleppo'. 'A Caverna' é o confronto com a face mais tenebrosa do ser humano. A cada som alto e potente, a turma de médicos de Ghouta se assusta.
Pode ser um avião carregado de bombas. Durante um dia todo, dezenas ou centenas de pessoas ensanguentadas adentram a tal caverna, o lugar mais seguro onde eles conseguem atender os machucados com alguma dignidade.
Amani é humilhada pelo parente de uma enferma: 'Você deveria estar em casa e cuidar do seu marido. Não acredito que seja a chefe dele', dispara, se referindo a Salim. Outra batalha, a da afirmação como profissional, está no horizonte.
Porém, trata-se de uma luta menor naquele instante. Os atingidos por destroços de bombas não param de chegar. 'A Caverna' faz você chorar logo nos primeiros 5 minutos.
Não há escapatória, nem resiliência, que suporte os dias malignos da guerra dita santa. Amani sai de vez em quando do cubículo e olha a cidade em volta, toda destruída, detonada, aos escombros.
Fayyad seguiu a médica entre 2016 e 2018 pelos túneis escavados nos arredores de Damasco. Neles, os doentes não corriam o risco de serem assassinados pelos russos ou o regime de Bashar al-Assad. São, na verdade, hospitais ambulantes.
Estas cavernas mudam de lugar a cada 2 ou 3 dias. O próprio diretor chegou a ser torturado pelo governo Assad. Ou seja, os perigos eram eminentes.
'A Caverna' leva 'Democracia em Vertigem' ao posto de 'bobinho da corte' e põe 'Indústria Americana' (ambos estavam entre os finalistas do Oscar de documentário) no chão. Duração: 107 minutos. Cotação: ótimo.