Lances de Proust (publicado originalmente em 27/6/2020)
Tenho visto os trabalhos de Ingmar Bergman e cada vez mais descubro o cineasta uniforme, ao mesmo tempo lúgubre e tenaz. A sua maior produção talvez seja 'Morangos Silvestres' (1957), ciceroneada pelas demais. O sueco era capaz de extrair dos personagens o lado obscuro das lembranças, da filosofia. A carga psicológica costumava imperar e no longa de 62 anos atrás não foi diferente. E a história observa o médico Borg (excepcional trabalho do ator Victor Sjostrom), 78 anos, que retorna à cidade natal, Lund, para receber um prêmio por sua carreira - ele mora em Estocolmo.
Com exceção da empregada, Agda (Julian Kindahl), que o médico trata como um amor platônico, ele se afastou de qualquer contato humano, em parte pela sua vontade, mas também porque a decisão dos outros não o querem por perto, como é o caso do filho, por conta do comportamento frio de Borg. Marianne (a bela Ingrid Thulin), a ex-esposa de Evald (Gunnar Bjornstrand), o filho do médico, passa uma temporada com o veterano, e o acompanha na viagem de carro à terra da infância. E é durante o trajeto que as memórias do idoso ficam frescas e ele recorda os momentos de outrora, contando-os à nora.
Bergman pode ter se inspirado em Marcel Proust, em seus livros da série 'Em Busca do Tempo Perdido' quando, por meio de um simples gesto, ou o lapso de um segundo, resgatam-se imagens e voltam à tona de maneira límpida cenas do período infantil, todos os sentimentos carregados de emoção e obsessão. O cineasta usou o isolamento, já que estava internado no hospital, para transportá-lo ao personagem principal.
Por meio dos cheiros dos morangos silvestres da plantação de sua casa quando criança, o então futuro médico viveu amores, frustrações, decepções e despedidas.
'Morangos Silvestres' tem lances de Proust e o espectador deleita-se toda vida. Três anos depois do lançamento, no Oscar-1960, foi indicado a roteiro original. Perdeu pra 'Confidências à Meia-Noite'.
Ingmar Bergman é um cineasta que precisa ser bastante discutido e debatido. Mas como fazer uma coisa dessas se hoje o que interessa à moçada é ver 'Minha Mãe é uma Peça' ou qualquer outro tipo de besteirol que só tem a missão de degradar o cinema como uma arte em si?
É claro que há público a tudo, porém há limites também. 'Morangos Silvestres' está na íntegra no youtube. Duração: 91 minutos. Cotação: excelente.