Serpentes a bordo (publicado originalmente em 6/6/2020)
É da peça 'Júlio César', de Shakespeare, a expressão 'ovo da serpente'. 'Eclodindo, como sua espécie, e crescendo de maneira malévola, temos de matar na casca, pois sabemos que dentro estão membranas de uma serpente', diz Brutus sobre Júlio César.
Em 1977, o diretor Ingmar Bergman rodou 'O Ovo da Serpente'. De forma lisa e fácil de compreender, o roteiro mostra a ascensão dos movimentos radicais na Alemanha do pós-guerra, a 1ª, encerrada em 1918. A inflação galopante, o desemprego gigantesco, miséria em todo canto, com a moeda ultra desvalorizada, o país era propício ao surgimento da figura do 'salvador da pátria', o povo como presa inocente pelo desespero e ausência de audácia.
Liv Ullmann e David Carradine são os protagonistas. Ela, Manuela, é ex-cunhada dele, Abel, trapezista judeu de um circo dos EUA (a fita se passa em Berlim, 1923). A moça apresenta-se num bordel, e trabalha também noutro serviço secreto. Abel está chocado com o suicídio do irmão Max e vai morar com Manuela. Aos poucos, percebe-se que o longa te convida a penetrar em lugares sombrios, inóspitos, desesperadores e lúgubres, por meio de Vergérus (Heinz Bennent), antigo conhecido de Abel, que o odeia. O filme foi o único produzido em Hollywood por Bergman e até hoje é referência política, ao bem e ao mal, quando nos vemos deparados com situação semelhante à da obra, que refletiu a temporada trágica germânica.
Meses atrás, ao entrevistar o desembargador Márcio Moraes no programa 'Gente em Destaque', na TV Câmara Jacareí, ele recomendou aos telespectadores que assistissem a 'O Ovo da Serpente' por notar, segundo Moraes, determinado paralelo entre o panorama atual do Brasil e a retratada na película.
Não vem ao caso se corremos tal risco de produzirmos um Adolf Hitler tupiniquim (o ditador nazista, aliás, é ridicularizado em algumas cenas do filme, por, lá em 1923, tentar dar golpes de Estado, todos com o grande fracasso - ele conseguiria tomar o poder anos depois). Tudo é questão de onde se mira o olhar. Duração: 118 minutos. Cotação: ótimo.