Os espelhos nossos de cada dia (publicado originalmente em 30/3/2019)
Ao ler 'O Ensaio Sobre a Cegueira', de José Saramago, a seguinte frase mexeu comigo: 'Ele notou que estava diante do espelho e se assustou – nada via, mas o espelho o enxergava'.
Antônio Abujamra dizia outra: 'Pensar é errar. O espelho reflete certo, pois não pensa'. Ao assistir 'Nós' (2019), o novo trabalho de Jordan Peele ('Corra!', 2017), o impacto foi tanto arrebatador, angustiante, nervoso ou até mesmo delirante.
Você não sairá da sala sem pelo menos refletir sobre o que acabou de ver. Na tela, a família Wilson vai à praia de Santa Cruz passar o fim de semana – pai (Gable, Winston Duke), mãe (Adelaide, Lupita Nyong'o), a filha mais velha (Zora, Shahadi Joseph) e o caçula (Jason, Evan Alex).
Um trauma de infância faz Adelaide ter calafrios quando chega ao local. Algumas coincidências se sucedem, peças parecem se fechar, enfim, o clima a ela não está bom ali. Até que durante a noite uma família se posta em frente à casa deles.
Quatro pessoas: pai, mãe e 2 filhos – imóveis, insensíveis, de certo modo muito estranhos. A partir daí a fita mergulha na insânia (loucura, demência?).
'Nós' tem tantas referências de clássicos do terror, e pistas, dicas de como a trama se desenrolará nos minutos seguintes que qualquer fã de cinema se deleita de forma absurda.
Desde 'O Homem que Ri' (1928), passando por 'Os Pássaros' (1963) e até mesmo 'Corra!', na qual parte da trilha sonora de 'Nós' está firme, nas mínimas nuances e sem cair nos achaques dos lugares-comuns.
Peele está mais lapidado e o seu trabalho tanto de diretor como de roteirista está umas 10 vezes melhor. E o que escrever sobre a atuação de Lupita? A atriz nos mostra toda a malignidade, frieza e desgosto de Red, o reflexo de Adelaide.
O longa aposta em toques de humor com mais parcimônia. Desta vez, J. Peele soube melhor equilibrar estes pontos e a fita, que estreou esta semana, é o horror psicológicos dos bons. Imperdível. Duração: 116 minutos. Cotação: ótimo.