‘Bingo’ e os anos 80 (publicado originalmente em 9/9/2017)
Quem foi criança entre 1981 e 1990, como eu fui, sabe a importância de tripudiar sobre determinado tipo de comando do chamado politicamente correto, instrumento estapafúrdio usado hoje em dia para regular o certo e o quase certo. A arte tem a obrigação de constranger essa
régua melindrosa e por em telonas, telinhas, palcos e internet o vômito dessa chatice, cuja contaminação já adoeceu muita gente neste país da tartufice.
Por isso, um filme como ‘Bingo: O Rei das Manhãs’ (2017), nos cinemas há 10 dias, é relevante. Dirigido por Daniel Rezende, grande experiência como editor (os 2 ‘Tropa de Elite’, ‘Árvore da Vida’, ‘Ensaio sobre a Cegueira’) e roteirizado por Luiz Bolognesi (‘Bicho de Sete Cabeças’, ‘As
Melhores Coisas do Mundo’, ‘Elis’), ‘Bingo’ é um chute no traseiro das desconcertantes verdades que temos visto por aí.
É a cinebiografia do ator Arlindo Barreto, desde o tempo em que estava com a pornochanchada até o sucesso na pele de Bozo, o palhaço criado nos EUA com os direitos comprados por Silvio Santos assim que sua TVS foi inaugurada. Vladimir Brichta é o protagonista, com Leandra Leal
na cola como a produtora evangélica Lúcia.
O script não tem receio de apresentar ao público as facetas obscuras de Augusto (Brichta): de ator pornô a viciado em drogas e sexo, filho carente duma atriz de brilho irregular, Marta (Ana Lúcia Torre – na verdade, a estrela Márcia de Windsor, jurada nos programas do próprio Silvio Santos e Chacrinha), ex-marido de Angélica (Tainá Müller) e pai do garoto Gabriel (Cauã Martins).
Rezende, como estreante no papel de comandante, dirige a fita com a mão de ferro e extrai de Brichta o que ele tem de melhor: a agilidade. A fita é ele e ponto final. Outro ator, uma escolha errada, e a obra daria no ralo. A produção esmerada na direção de arte surpreende do começo ao fim: desde o cenário do programa infantil, inclusive créditos da abertura, ao figurino e trilha sonora.
Ali, a TVS (depois SBT) é a TVP e a Rede Globo é a TV Mundial, sob a batuta de Pedro Bial (Armando)! ‘Bingo’ me fez reviver a época que quase deixei cair no abismo. Fez-me agarrá-la de volta e puxá-la com força. Tudo de errado daquele período e que hoje seria inadmissível (a
Gretchen numa atração para crianças, rebolando, por exemplo) era para ser assim.
O mundo ficou aperreado, e sem graça. O filme é uma luz que banha o século 21 de maneira indecente. E que bom que funciona.