Vida sem paciência - Meu encontro com Vida Alves
Escrevo este texto ao saber da morte de Vida Alves, aos 88 anos, pioneira da TV tupiniquim. Com Lima Duarte, Hebe Camargo e Lolita Rodrigues, Vida contribuiu demais para com o veículo. Aliás, foi a que mais se empenhou em guardar a memória da TV. Criou a instituição do setor, entrevistou dezenas de profissionais da velha guarda, juntou objetos e relíquias.
Ter dado o primeiro beijo diante da telinha, em 195O, em Walter Forster, além do primeiro beijo numa mulher, na década de 1960, parece ter revelado a Vida uma trajetória dos vestígios da televisão. De certa forma, ela, creio, se sentiu impelida a desempenhar o papel de responsável pela biografia da TV brasileira.
Não havia quem fizesse, então Vida fez. E fez bem. O Brasil pode ser um país sem memória, porém da TV não se pode fazer tal acusação. Isto se deve de maneira exclusiva a Vida Alves. Feito este prólogo, deslindo os motivos de eu não ter alegres recordações desta senhora.
Entre 2OOI e 2OO2 Fabiana Roberto Oliveira e eu fizemos, em parceria, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Tratava-se de uma pesquisa sobre a radionovela brasileira, uma das fases de mais relevância na comunicação do país no século XX. Iniciamos as buscas pelos entrevistados. Quem poderia falar disso? Quais atores, atrizes, apresentadores, radialistas, enfim, participaram deste momento e teriam o que dizer?
Fabiana cuidou de achar estes artistas. E ela fez a maioria das entrevistas sozinha. Uma delas, creio bastante marcante, foi com Nicolau Tuma, vanguardista do rádio nacional. Ele estava com 91 anos em 2OO2. Foi gentil, simpático, colaborador. Eu cuidei do texto, basicamente. Redigi, revisei o livro, além de ter a ideia do título: ‘Quando a Imagem não Existia’. Fabiana diagramou, deu os retoques e corrigiu alguns pontos. Mas estes dados todos não vêm ao caso agora. Falemos de Vida.
Fabiana chegou à Vida não me recordo como. Achou o telefone, agendou a gravação da entrevista. Estávamos bem empolgados. O TCC ia a galopes. Também não assomo se o encontro – que se tornou o batismo de fogo na profissão de jornalista a ambos, Fabiana e eu – se deu na casa de Vida ou na sede da Associação criada pela atriz. Foi na cidade de São Paulo. Uma moça nos atendeu. ‘Dona Vida já vem atender vocês’.
Ela nos levou a uma sala de porte médio. Passamos por um corredor e num quarto vimos pilhas e pilhas do livro que a artista lançaria dentro de uns dias. Era a sua autobiografia, saberíamos depois. Vida tinha 73 anos. Demorou pouco a chegar. Cumprimentos rápidos. Pra mim, a primeira vez cara a cara com uma atriz, a uma entrevista. Uma celebridade, quando a palavra estava polida. Nem sabia como me portar. E então se iniciou o bate-papo, que resumo em algumas palavras: trágico, constrangedor, decepcionante e sofrido demais.
‘Ah, é uma pesquisa sobre a radionovela? Pois não, o que vocês desejam saber?’, ela começou. Eu resolvi, então, me arriscar a dar o pontapé inicial. Mirei a metralhadora e disparei de olhos fechados, a esmo. ‘Como começou a sua carreira? Quando entrou nas radionovelas? Que lembranças a senhora tem daquela época? Quais os atores e atrizes que também faziam parte? Onde eram as gravações?...’. Vida me interrompeu.
‘Opa, opa. Espere um pouco. Faça uma pergunta de cada vez, por favor. Fale pausadamente, uma por vez. Assim eu te compreendo e respondo melhor’. Levei um choque, pois ela não falou de um jeito doce. Foi ríspida, como se desse uma bronca na empregada que não lavou o copo direito. Fabiana e eu nos olhamos. Engolimos a seco. A conversa seguiu, daí em diante, naquele ritmo de introspecção e desespero. Estava louco pra cair fora dali o mais depressa possível. Notei que Fabiana também ficou atônita. Abreviamos.
Vida estava sem paciência com estudantes de Jornalismo naquele dia. Claro que também tivemos nossa parcela de culpa. Estávamos afobados, ansiosos. Todavia, não contribuiu, não ajudou e tampouco auxiliou. Tratou-nos como qualquer coisa. ‘Bom, eu preciso sair porque tenho outros compromissos e estou organizando o lançamento do meu livro’. Fim.
Não me lembro do que conversamos, Fabiana e eu, logo após sairmos do local. Ou se fomos quietos, o que pode ser o mais provável. Vida nos deu o convite ao lançamento de seu livro. Estivemos lá. Até o Amaury Júnior compareceu. A atriz entrou no evento em cadeira de rodas, pois havia passado mal durante o dia. Foi aplaudida por todos. Menos por mim. Seu papel na festa foi apenas assinar os livros, sem dedicatória a nomes específicos.
Ao entrar, falávamos nossas graças a um rapaz que escrevia dentro da obra e deixava pronto para Vida. Quando chegou a minha vez, de novo frente a frente com ela, os segundos foram resumidos. Ela me olhou, assinou e me entregou. Nada disse. Eu nada apostei em questionar. Ainda tive o brinde de esbarrar com Renato Consorte, outro ator das antigas. Falei a ele sobre o projeto do livro sobre a radionovela e perguntei se ele queria dar um depoimento. Ele se mostrou um aluno da escola VALE (Vida Alves para Lidar com Estudantes).
O livro ‘Quando a Imagem não Existia’ saiu, nos formamos. Porém, eu, particularmente, sempre que assistia a alguma entrevista de Vida Alves na TV, ficava bestializado. ‘Ela sabe fingir. É, de fato, ótima atriz’.