Umberto Eco e a Semiótica em Casablanca
Umberto Eco escreveu uma importante análise semiótica sobre Casablanca e considera que o filme trabalha com arquétipos que frequentemente reaparecem em narrativas e desempenham uma vaga sensação de dèjá vu: situações em que se tem a impressão de já ter visto ou vivido.
O filme permanece em nossa memória como um todo, pois apresenta não apenas uma idéia central, mas sim várias e isso o torna um Cult Movie. A semiótica parte da análise: de estrutura comum (common frame) que é situação estereotipada, seqüência de ações codificadas do dia a dia como, por exemplo, jantar no restaurante ou ir à estação de trem; de estrutura intertextual (intertextual frame) que é a situação estereotipada baseada em conhecimento prévio como o duelo entre o xerife e o bandido ou em narrativa onde o Herói enfrenta o Vilão e ganha, ou ainda como o suspeito que escapa de um posto de controle e é baleado pela polícia. Além disso, há a iconografia estereotipada como o Nazista Mal (Evil Nazi) que pode desenvolver uma estrutura intertextual.
O filme Casablanca tem início com uma música africana (gênero de filme de aventura) e depois muda para a Marselhesa (gênero de filme patriótico). Em seguida, sobre a imagem do globo, uma voz sugere uma reportagem (gênero de jornal cinematográfico) descrevendo a Odisséia de Refugiados e a rota Casablanca-Lisboa (gênero de Intriga Internacional).
Casablanca é a cidade que representa o Último Posto Avançado no Fim do Deserto. O Rick’s Café Américain incorpora a visão da Legião Estrangeira perto do Grande Hotel para onde pessoas vêm e vão e nada acontece. Neste café há o Inferno do Jogo em Macau ou Singapura (mulheres chinesas) e o Paraíso dos Contrabandistas. No café tudo pode acontecer: amor, morte, perseguição, espionagem, jogos de azar, sedução, música, patriotismo. Há a tentativa de fuga e a prisão de Ugarte (filme de ação) depois aparece o agente norueguês Berger (filme de espionagem). Pétain (Vichy) versus a Cruz de Lorena representam a oposição entre colaboracionismo e resistência (filme de propaganda de guerra). Victor Laszlo e Ilsa Lund – o Herói Incontaminável e a Mulher Fatal (ambos de branco) em contraste com os alemães que normalmente estão de preto e o casal é apresentado ao major Strasser que se apresenta de branco para reduzir a oposição visual. Ilsa e Strasser representam a Bela e a Fera. Depois que o café é fechado à noite, estão sozinhos Sam e Rick, pouco antes do flashback, eles são o Servo Fiel e seu Amado Mestre (Dom Quixote e Sancho Panza).
No início do filme, Rick Blaine aparece como sinédoque (sua mão) e metonímia (seu cheque). A sua personalidade complexa aflora como O Aventureiro, o Self-Made Businessman (dinheiro é dinheiro), o Homem Inflexível (Tough Guy) de filme de gangster, Nosso Homem em Casablanca (Intriga Internacional), o Cínico Sedutor (despreza Yvonne) e o Herói Hemingwayano (pois ajudou tanto etíopes como espanhóis contra o fascismo). O fato de não beber representa um problema, mas o flashback ajuda a introduzir o Amante Desiludido que se transforma no Amante Desesperado (Beber para Esquecer) para no fim ser o Bêbado Redimido. O Flashback representa O Poder da Memória para recordar o Encontro Breve (com Ilsa Lund) na Última Vez que Vi Paris.
Rick Blaine representa o Diamante Áspero: permite que o casal búlgaro obtenha o dinheiro necessário para os vistos de saída após ele ser ríspido com Annina Brandel; permite a execução da Marselhesa após ser ríspido com Victor Laszlo e negar a venda das cartas de trânsito; descobre que o Amor é para Sempre depois de dizer que Ilsa poderia atirar nele. Há a quinta essência do Drama na figura do Clímax depois de cada anti-climax.
Casablanca-Lisboa significa a Passagem para a Terra Prometida. Casablanca representa a Porta Mágica. Entretanto para se fazer a passagem deve-se submeter a um Teste. Há a Longa Espera do Purgatório. A Chave Mágica é a carta de trânsito. O Capitão Renault encarna o Guardião da Porta que deve ser conquistado pelo Presente Mágico (dinheiro ou sexo). A Chave Mágica não é comprada pelo dinheiro, pois é dada como Presente (recompensa pela Pureza). O Dono (da Chave) é Rick que dá dinheiro (de graça) para o casal búlgaro e ele também dá as cartas de trânsito (de graça) para Victor Laszlo. A Roleta de Vida ou Morte (Roleta Russa que devora fortunas e pode destruir a felicidade do casal búlgaro – Epifânia da Inocência).
Ao se sacrificar Rick consegue a Redenção. Os impuros não vão para a Terra Prometida (a América), mas para a Resistência (Rick e Renault) visando a Guerra Sagrada (Holy War) que é um glorioso Purgatório. Victor Laszlo vai para o Paraíso por ter sofrido com a clandestinidade. O avião é o Cavalo Mágico (na cena final há inclusive um emblema do cavalo Pegasus no avião).
A idéia de sacrifício perpassa todo o filme: o sacrifício de Ilse Lund em Paris quando ela abandona o homem que ama para voltar para o Herói Ferido; a jovem búlgara decidida a se sacrificar para ajudar o marido; o sacrifício de Victor Laszlo que está resignado a ver Ilse Lund e Rick Blaine juntos a fim de garantir a segurança dela.
O Amor Infeliz é arranjado em triângulo. Normalmente há o Marido Traído e o Amante Vitorioso. Neste caso ambos os homens são traídos e sofrem uma perda. Nesta derrota todavia há um elemento subliminar (Amor Platônico) que escapa do nível da consciência, pois Rick admira Victor, Victor é ambiguamente atraído pela personalidade de Rick: ambos chegam ao extremo de um duelo de sacrifício próprio em prol do outro. Como no livro As Confissões de Rousseau (1712-1778), a mulher é o intermediário entre os Homens, um jogo de virilidade, dança de sedução em torno da Bela. A resolução se dá com o Sacrifício Supremo (que permite que Victor e Ilsa partam juntos) e, assim, ocorre a Redenção de Rick Blaine.
*Nota: O paper “Casablanca: Cult Movies and Intertextual Collage” foi apresentado por Umberto Eco no Simpósio “Semiotics of the Cinema: The State of the Art”, em Toronto, no Canadá, em 18 de junho de 1984.
**O presente texto trata-se do capítulo "Umberto Eco e a Semiótica em Casablanca" do meu livro: Casablanca: Política, História e Semiótica no Cinema (ALL PRINT Editora, 2010)