O grande meio-dia

Abenon Menegassi

Assisti nesta madrugada (17/10/2015), ao filme High noon, Matar ou morrer, Fred Zinnemann, 1952, com música impregnante de Tex Ritter. A película exibe em cenas inconfundíveis tipos psicológicos atuais. Cada um defendendo e se defendendo (selvagemente) a despeito de valores como solidariedade. Diante de uma situação difícil, os poderes institucionais e suas regras vão se desfazendo ao mesmo tempo em que se inicia a debandada geral por um lado e a bajulação e as barganhas com suas respectivas negociatas individualistas por outra. O primeiro a fugir é o juiz da cidade; aquele que deveria ficar e garantir a presença das insígnias da lei. Depois...o carguismo, o amor ressentido, a amizade traída...a humana, demasiada humana vontade niilista de nada. Chama a atenção o detalhe da "tin star", estrela de lata, que, por uma lado, vai sendo trocada de mão em mão como mercadoria e, por outro, como signo de tarefa com a qual nem todos se acham compromissados, como contraste à violência mercenária..., enfim, esfinge gasta de uma referência possível, entre outras, a valores que a vida gregária com o tempo finda por rebaixar.

O termo “noon” do título em inglês significa “meio-dia”. E de cara qualquer pessoa poderia perguntar “por qual motivo meio-dia e não outra hora qualquer, afinal trens chegam e partem o dia todo?” Minha imaginação viajou durante o filme em torno desta pergunta. Não muito aleatoriamente dado que o termo tem um sentido singular para Nietzsche. Sobre o termo, remeto o leitor ao final da segunda dissertação do livro Genealogia da moral. A referência do filme a este texto de Nietzsche é clara. No filme pode-se identificar um desfile de personagens cansados, ressentidos, vingativos, rebaixados, todos adoradores e seguidores de “propensões inaturais” que se deixam levar como todo mundo. Desde este crivo, percebe-se a crítica que Zinnemann dirige à sociedade americana. O filme apresenta-se como um corte histológico que revela as camadas originárias da american way of life presente desde sempre naquele território. Mas, a referência a Nietzsche não para por aí.

No mesmo texto, entre outros (Assim falava Zarathustra, principalmente), este pensador define o que é o Grande meio-dia. Nietzsche inicia o aforismo perguntando quanto custa para cada um neste mundo construir um ideal, pois o preço a ser pago é caro uma vez que o ideal é um santuário cujo preço por sua efetivação é o da derrubada de outro ideal. E foi por isso que chamei a atenção para a “tin star”; ela é este objeto fetiche que condensa naquela sociedade o bem maior, a justiça, entenda-se a vingança, que gira na órbita do ideal americano (e moderno), o qual, por sua vez, teve que denegrir e negar outras realidades. Durante o filme me perguntei, com Nietzsche: quantas vozes não foram caladas para que esse nível de realidade pudesse vir e se manter à tona? “Quanta realidade teve de ser denegrida, quanta mentira teve de ser santificada, quanta consciência transtornada, quanto “Deus” sacrificado?”, quanta irmandade em torno da “má consciência”, quanto “olhar ruim”? Perguntei também onde, no filme, estavam os banqueiros?

Will Kane (Gary Cooper), encarna o tipo de homem que tem a necessidade de se afirmar corajosamente num tempo em que o rebaixamento dos instintos encontra inúmeras maneiras e formas de agir para fazer escoar a força, a coragem. Entre elas, a religião, o casamento, o lobismo... Não que seus valores sejam menos americanos, talvez ele seja o representante maior da degeneração social daquela e da nossa cultura e que se expõe durante as quase duas horas de filme. O que o distingue é sua convicção em defender aquilo que para esta cidade é o mais sublime, o mais esteticamente valorizado, o mais baixo tornado moral e arte, enquanto os outros já estão corrompidos e derrotados. O que o difere dos demais é, portanto, ainda acreditar na honra e na “tin star” como força legítima que atua em prol de seus ideais. Para defender estes ideais ele jogará com a própria vida. Mas, o que o filme mostra mesmo é, não o zênite, mas o nadir de nossa condição humana.

Em sua obra Nietzsche fala sobre a morte de Deus e da Grande Espera pelo redentor de tudo o que se dá como crise de consciência a partir desta morte; fala da espera do Além do homem que trará a Grande saúde e que virá num Meio-dia. No filme, em uma hora e meia vemos uma grande espera. Trata-se da chegada de um bandido que volta à cidade para se vingar do xerife. É como se dissesse: é o que temos, este é o nosso “High noon (grande meio-dia). Embora seja meio-dia no tempo cronológico, sequer é meia-noite, tempo de crises e de gestação de novas ideias, no tempo moral. No filme, o trem, ao chegar à estação, entoa seus três sinais anunciando a chegada daquilo que produzimos de melhor... a vingança, o ressentimento...a doença dos instintos e da moral.

Em “Ao meio-dia”, Zarathustra, ensina que meio-dia será o espaço-tempo em que o amor unirá os opostos separados pela metafísica. Neste dia-hora, a perfeição e a felicidade virão à tona. Então, diz ele, será a hora do grande silêncio. No entanto, no filme, o que temos quando o relógio da parede anuncia este meio-dia adoecido? Estampidos, marca americana de sua “excelência”. Mas, há mesmo uma espécie de silêncio nas ruas de Hadleyville, o silêncio do medo, da covardia, do desespero, do desamparo medíocre.

A palavra “desamparo” (Hilflosigkeit) pode ser entendida em pelo menos dois sentidos. Primeiro, pode ser entendida como sendo o sentimento de abandono que alguém vive quando, envolvido numa questão, procura ajuda entre seus pares e não a encontra. Neste nível, desamparo é a dor que se sente por estar só, não considerado, desprezado e não reconhecido...É o que vive Will, peregrinando de porta em porta pedindo reconhecimento para si e para a sua causa.

Segundo, é a solidão de quem superou a necessidade de estar com alguém, é a suprema solidão é...a saúde. Nada tem que ver com desejo de ser reconhecido. Aqui, estar só e desamparado é o necessário para alguém que não mais acredita em ilusões.

Em (Genealogia da moral, II, 24), acima mencionado, Nietzsche afirma que o homem da “Grande Saúde”, que nos salvará do ideal vigente, ainda não despontou no horizonte da história. Portanto não há que confundi-lo com caricaturas de momento. Em inglês “Will” significa “vontade” e é o primeiro nome de Kane. Contudo, não se trata do mesmo homem, Kane não é o Além do homem de Nietzsche, a vontade que move Will não é a mesma vontade que efetivará o Além do homem na história. A vontade de Will é reativa, ela se impõe como força que defende os valores que degradam o homem: a justiça...”tin star”. Ele teria sido mais afirmativo se tivesse de fato ido embora. Curioso que várias pessoas no filme tenham esta intuição. Mas, para Will, isto seria fugir. A meu ver, escapar daquela miséria toda teria sido seu mais elevado ato de coragem; mas, Will cede e, diferentemente do dançarino na corda bamba que Nietzsche descreve em Zarathustra, (que, mesmo pagando com a vida, não escuta a coação do gênio maligno que lhe dá como opção ficar na torre de onde saiu), olha para trás e volta... Ora, esta volta ao lugar comum, à democracia, ao convívio do populacho e à defesa de seus valores “mais nobres” é o que sedimenta Will nesta vida de vermes parasitas que odeiam a vida e a terra e acreditam em fantasmagorias. No final, ainda é o ressentimento que comanda sua decisão.

Cabe lembrar que o Grande meio-dia na história se dará como derrocada exatamente dos valores que Will defende. Portanto, o advento deste Além do homem, diz Nietzsche, se dará num futuro mais forte, num tempo de redenção, num tempo de superação do niilísmo..., e este tempo será justo “O Grande meio-dia” da história da humanidade. Um tempo em que a águia (idealismo) e a serpente (materialismo) se tornarão amigas, como diz Zarathustra; e amigas numa aliança em que não mais vegetaremos como corpos amesquinhados e nem como crentes em ideais ascéticos. Um tempo em que os sinos dobrarão três vezes anunciando a chegada necessária, no sentido forte, do homem que vencerá este presente podre que duvida de si mesmo. Este toque de sino será o do “... meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem que vir um dia...” (Nietzsche, Genealogia da moral, II, 24).

Uma objeção importante poderia ser destacada aqui: dado que os bandidos irão matar e roubar, não está correto defender a cidade? Sim, está correto defender a cidade, mas, a questão é como e por quais motivos? O que não se pode perder de vista é que nossas ações não estão encerradas em si mesmas, não se perdem numa descontinuidade. Elas são reflexos de valores morais que abrigamos ou descartamos num mundo bolha que rebate reflexivamente ações e reações, causas e efeitos, meios e fins interligados e intercondicionantes. Por isso nossa ação é sempre ética, quer dizer, definidora de um estilo que busca um corte na lógica reprodutiva da barbárie. Em certo momento do filme Will e um dos facínoras se encontram e se encaram por um bom tempo; ensimesmados não trocam uma palavra, pois desde o começo já está tudo dado e compreendido, logo, o desenlace do enredo deve seguir seu curso, suas vidas seus destinos. Como parte de um todo estruturado e comandado segundo leis externas e definitivas, estes personagens não tem mais controle sobre suas próprias vidas e seus desejos mais singulares; sequer supõem que exista algo fora e além daquilo para o qual estão programados e autorizados encenar. Ora, este é o mais exato e puro exarcebo da manifestação de um fatalismo que não dá margens a opções e a criações de saídas que superem o status quo. Nesta lógica, matar ou morrer, portanto, é já, uma sentença. É a sentença que determina que é assim que as coisas devem ser e serão.

Assim, se está correto defender a cidade, essencial se torna fazê-lo de modo a não se afirmar, através desta defesa, o mal que se quer combater. Este é o sentido, um dos, daquilo que alguns autores dão para “colaboradores zelosos” que aceitam fazer o trabalho sujo da história. Mas, por qual motivo aceitam? Pelo motivo de que não sabem que o fazem. Para eles, limpar a sujeira é só e heroicamente limpar a sujeira. Não é, de modo algum, reafirmá-la, reproduzi-la. E aí está todo o problema. Para finalizar, interponho a pergunta que reaparece no cinema a todo momento e que está no âmago da obra de Nietzsche: dado que somos homens do niilismo e que não o venceremos tão cedo, para onde vamos? E mais, enquanto não o superamos, o que fazer aqui, neste poço fundo, frio e deplorável da nossa história?

Na extensão do espectro que vai do macaco ao além do homem há variações típicas de possibilidades. O Empregador de Will, sentado em sua cadeira, desde onde parece contemplar a história, tem a sua resposta derrotista: “nada vale a pena!” Para Nietzsche a resposta seria outra: criar como uma criança. Em Assim falava Zarathustra, Nietzsche anuncia que só a criança pode avançar a partir de onde o leão falhou. A criança é inocência, diz Zarathustra, jogo, recomeço, esquecimento e roda afirmativa. (Assim falava Zarathustra, Ao meio-dia).

SP 17/10/2015