Piscina cheia / Piscina vazia (publicado originalmente em 29/9/2015)
Com menos de cinco minutos de ‘Que Horas Ela Volta?’ (estreou em 27 de agosto no Brasil, mas veio ao Vale do Paraíba somente 3 semanas depois) você se esquece de que Regina Casé apresenta aquele programa na TV Globo. Com menos de dez minutos, você sabe que está diante duma superprodução, mais uma, aliás, da talentosa cineasta Anna Muylaert (de ‘Durval Discos’, 2002). Ela faz o simples, e em razão disso, pensamos ser fácil a tarefa. Erramos... Então nos damos conta de que há pessoas que realizam as maravilhas que, sabemos, nós jamais seremos capazes de igualar, ou sequer de imitar.
‘Que Horas Ela Volta?’ é sobre Val (R. Casé) e São Paulo. Ela trabalha como empregada doméstica na casa de um casal mal resolvido (ótimos Lourenço Mutarelli, Karine Teles) que tem um filho, Fabinho (o ator Michel Joelsas, de ‘O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias’, 2006). Val mora no emprego.
É tratada “como se fosse da família”. Vê o garoto como filho, enquanto Carlos (Mutarelli) se entretém com depressão e Bárbara passa o dia no trabalho. Essa vidinha se vê diante desta reviravolta: Jéssica (Camila Márdila, perfeita), a filha que Val não encontra há anos, vem a SP para prestar o vestibular.
Na casa dos patrões, Jéssica se comporta como se fosse da família, sem aspas, pra desespero da mãe: dorme no quarto de hóspedes, se senta à mesa com quem manda e explora toda a cortesia de Carlos.
Muylaert, também roteirista da obra, sabe o que faz. Sua direção é suave, sem se intrometer tanto no filme. Domina os atores com delicadeza, marca registrada de seus trabalhos. Redigiu um script com sutis ironias e acachapantes conclusões. ‘Que Horas Ela Volta?’ é o filme brasileiro mais comentado das últimas semanas. Estreou no exterior no começo do ano e conquistou muitos prêmios. Para sites especializados no Oscar, é candidato e estar entre os cinco finalistas da categoria Filme Estrangeiro.
Talvez na cena mais comovente, Val entra na piscina quase vazia dos patrões, ali brinca, para orgulho de Jéssica, com quem fala ao telefone. A piscina esteve cheia a maior parte do longa. Importamo-nos com ela naquela sequência. É como a história do copo cheio / copo vazio e de como você encara isso.
Anna não erra. A precisão de seus trabalhos parece se complementar propositalmente. Ainda estou tentando decifrar o enigma do novelo, mas hoje tenho a certeza de que ele não mais está enrolado. Vi o quarteto de fitas comandadas por Anna e investigo as origens das ideias. A vida cotidiana, do pão com manteiga no café da manhã, dos cigarros à tarde, as reflexões pueris, são as ferramentas para a feitura das obras da cineasta. Desde ‘Kiki e a Origem dos Bebês’, curta-metragem dirigido e escrito por Anna em 1990, ela se mostra hábil na arte de abraçar personagens de uma maneira bem singela.
Na maioria das cenas de Val, a parede divide o protagonismo com a personagem. Ícone da barreira que separa a empregada do mundo real dos patrões. Simbologia ímpar dum cinema bem trabalhado.
Assim como sei que ‘Terra em Transe’ é o melhor filme da década de 60; ‘A Dama do Lotação’ da de 70; ‘Pixote: A Lei do Mais Fraco’ e ‘Festa’, dos anos 80; ‘Central do Brasil’ e ‘O Auto da Compadecida’ dos 90 e ‘Durval Discos’ e ‘Cidade de Deus’, dos anos 2000, ‘Que Horas Ela Volta?’ entra na lista dos melhores da década de 2010, sem dúvida, bem como Anna está ao lado destes diretores todos aí, a começar por Glauber Rocha, até Fernando Meirelles, Walter Salles, Hector Babenco, Ugo Giorgetti.
Frases lapidares como ‘você não entende, filha: quando eles [patrões] nos oferecem alguma coisa, é por educação, porque têm a certeza de que vamos recusar’, ‘esse sorvete não é o nosso, é do Fabinho’, e ‘não te falei que as xícaras eram pra ocasião especial, mas não essa! Pegue para mim as porcelanas suecas’, ‘todo mundo dança, mas sou eu quem põe a música’ preenchem o ‘Que Horas Ela Volta?’. É imaturo afirmar ser a fita apologia ao socialismo, ao PT e transformações no Brasil nos últimos anos. A trama deve ser entendida como troca. Nada nos comove mais do que o olhar, o sorriso, um abraço.
Anna traz gestos acessíveis, dá o toque falsamente despretensioso. Coisa de craque: a assinatura dela impregnada por elementos que estão grudados em nós, como o preconceito, a soberba e a impostura.
Se dividíssemos o script em contos, certamente seriam: o quadro, o sorvete, a bandeja, o presente, o vestibular e a piscina. E todos eles seriam atados pela mesma corda. Uma das críticas feitas sobre o filme, relaciona-o ora com Woody Allen, com Ingmar Bergman, ora com Pedro Almodovar. E nesse ‘jogo da amarelinha’ os saltos não significam mudança, mas, sim, alternância de ideias, todas ligadas.
Tive muitas ‘Vals’ em minha vida. Eliane, Fátima, Olga, Fabiana... Estes eram seus nomes. Até meus 15, 16 anos, quando a última saiu, faziam parte da rotina da casa. Não moravam nela... Umas tinham filhos. Outras, não. Ajudaram bastante meus pais na criação de mim, meu irmão. Minha avó também esteve sempre presente, parte importante desta roda. Porém, com as ‘Vals’ a liberdade era como a de Fabinho com sua tutora. Inesquecíveis todas. Assim como a película de Anna Muylaert, uma mulher genial.