O acerto de Porchat (publicado originalmente em 19/5/2015)
No livro ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ (José Saramago), o protagonista, mergulhado na escuridão branca e cada vez mais enlouquecido, entra em sua casa e teme ficar de frente ao espelho. ‘Neste momento é o medo. Sei que não posso ver o espelho. Mas ele me vê.’ O pavor o faz dia após dia solitário, porém a esposa enxerga e o auxilia em praticamente tudo. Não sei se o humorista Fábio Porchat tomou o livro do português como referência a realizar seu ‘Entre Abelhas’ (2015), mas, se tomou, acertou deveras.
Na trama, Bruno (Porchat) se divorciou recentemente de Regina (Giovanna Lancellotti) e procura a diversão com o amigo Davi (Marcos Veras) em boates. Depois de sair duma noitada, as pessoas com quem Bruno costuma se relacionar começam a sumir. Primeiro é um taxista, depois os transeuntes e assim por diante. Tomado por uma crise de consciência perturbadora e sem anestesia, Bruno precisa recuperar a sua vida. Como? A resposta está longe de surgir fácil. Talvez a cadeira vermelha explique.
O título do longa se refere à colônia daqueles insetos, quando eles não estão fisicamente unidas e, em termos chulos, ficam ‘cada um por si’. No caso de Bruno, as semanas se passam e todos desaparecem como fantasmas. Luís Lobianco, Carlos Imperial de ‘Tim Maia’ (2014), dá a pitada cômica, na pele do atendente de pizzaria convidado pela mãe de Bruno (papel de Irene Ravache) a testar a visão dele. E na medida em que os minutos se esvaem o protagonista revê as ideias sobre sua família e os amigos.
Porchat se dá bem no drama. Fiquei surpreso. Ele próprio fez o script, ao lado de Ian Sbf. Conseguiu dar à fita ares dum terror psicológico. Não sei se propositadamente, o comediante revelado no ‘Porta dos Fundos’ deixa desamarrada as pontas do roteiro. De maneira certa dá de ombros às concessões e ao público mais conservador o desfecho provoca calafrios. Esta característica que falta nas produções em geral, consideradas água-com-açúcar, tende a deixar o espectador frustrado erradamente, penso.
Em dado instante de ‘Entre Abelhas’ –posso me arrepender de escrever isto – me lembrei das antigas comédias de Woody Allen, como ‘O Dorminhoco’ (1973) e ‘Bananas’ (71), e também de dramas fortes do nova-iorquino, como ‘Interiores’ (1978) e ‘Setembro’ (87). Não pelo lado de história em si, mas da carga alta de provocação no ar, misturada à tênue linha que divide riso da lágrima. Ponto a Porchat.