MEMÓRIAS DE UM CINÉFILO PARTE 2

Meu pai, Américo Lucchetti, teve diversos empregos. Entre outras coisas, foi delegado (na época, não precisava ser formado em Direito para exercer o cargo), professor de Inglês, coletor (fora nomeado pelo então governador de São Paulo, Washington Luís). Mas sua grande paixão – paixão essa despertada ainda na adolescência – era a fotografia, o que o levou a tornar-se fotógrafo profissional.

Abre um parêntese.

Dizem que “filho de peixe, peixinho é”. Entretanto, esse dito popular é desmentido por mim. Nunca me interessei por fotografia. Uma prova disso é que comprei minha primeira máquina fotográfica somente aos 61 anos de idade e só me aventuro a tirar fotos com ela porque é uma câmera inteiramente automática. Desde menino meus interesses sempre foram quatro: histórias de Detetive & Mistério, revistas pulp, histórias em quadrinhos e filmes.

Fecha o parêntese.

Em 1928, como presente de casamento, meu avô materno, o nonno Pasquale Baldassare, montou para meu pai um estúdio de luxo em sua cidade natal, a pequena Santa Rita do Passa Quatro, no interior do estado de São Paulo. Esse estúdio durou pouco tempo. Faliu, já que meu pai era um perfeccionista e nunca estava satisfeito com o resultado de seu trabalho, gastando muito material (chapas, papel fotográfico etc.) para tirar uma simples foto; além do mais, uma cidade tão pequena como Santa Rita não era adequada para abrigar um estúdio tão luxuoso (acho que, na época, não era adequada nem mesmo para ter um estúdio fotográfico). Então, por volta de 1933 (eu tinha uns três anos de idade), minha família se mudou para São Paulo, pois o nonno conseguira para meu pai um emprego de chefe de escritório na Casa Zuffo, uma loja de ferragens situada em frente ao prédio do DOPS, no Largo General Osório, no bairro de Santa Ifigênia. Meu pai ficou na Casa Zuffo pouco mais de onze anos. Certo dia, ele, que tinha um gênio muito difícil, discutiu, brigou com um dos donos; e, conseqüentemente, para desespero da minha mãe, Assumpta, perdeu o emprego.

Após sair da Casa Zuffo, meu pai passou a dedicar-se inteiramente à fotografia. Costumava tirar fotos de casamentos, usando uma grande câmera com tripé. No entanto, o que ele mais fazia era restaurar fotografias antigas. Nos fins de semana, viajava principalmente para a zona rural de Santa Rita. Visitava fazendas e sítios, onde sempre havia fotos para serem restauradas. Numa dessas viagens, eu o acompanhei. Foi a primeira e única vez que pisei o solo de uma fazenda, já que sou uma pessoa essencialmente urbana.

Meu pai fora até lá, para visitar um amigo, administrador da fazenda, e acabou conseguindo inúmeras fotografias (a maioria delas de familiares de imigrantes italianos, colonos da fazenda) para serem ampliadas e/ou restauradas.

Depois do jantar, participamos de um serão numa grande sala que tinha paredes caiadas, chão lavado, enormes janelas coloniais, lampiões pendentes dos travessões de madeira e telhado sem forro. Estavam presentes, além de meu pai e eu, o administrador da fazenda, sua esposa, um veterinário (ele havia ido à fazenda para vacinar o gado) e mais umas três pessoas. Sobre a comprida mesa (sem verniz, essa mesa mais parecia uma extensão do próprio assoalho) havia uma bacia de pipoca e um grande bule de ágata cheio de café.

Durante umas cinco horas, comendo pipoca, tomando café e embalado pelo som de um carrilhão que, a cada quinze minutos, avisava que a noite avançava, ouvi todos contarem histórias fantásticas e estranhas. A que mais me impressionou foi a que tinha como protagonista um monstro que aterrorizava uma cidadezinha do interior. Não sei quem a contou; apenas sei que ela me marcou tanto que, alguns anos mais tarde, eu a transformaria no conto “O Monstro de Ouro Verde”.

Quando todos terminaram seus relatos, já passava de uma hora da manhã. Então, saímos para dar uma volta pelas imediações. Um luar maravilhoso iluminava, até onde a vista alcançava, os cafezais. Essa imagem, que eu jamais irei esquecer, ajudou a compor o cenário descrito em “O Monstro de Ouro Verde”. E devo confessar que, ao vê-la, tive consciência de que estava sendo tocado por algo imponderável, um estado de graça que, infelizmente, nunca mais iria se repetir. Foi um instante extraordinário aquele. Foi o instante em que consegui compreender que o maravilhoso existe!

No entanto, nem tudo foi maravilhoso nos seis meses que se seguiram à demissão do meu pai. Para minha família, foi, na verdade, um período de penúria, em que eu tinha de dar em casa (morávamos na Rua Catão, na Lapa) quase todo o meu salário de office-boy (eu tinha, então, quatorze anos de idade; e começara a trabalhar com treze anos).

Percebendo nossa dificuldade, o nonno, que estava numa situação financeira boa, uma vez que era viajante e possuía algumas propriedades em Ribeirão Preto, deu uma de suas casas para os meus pais morarem. E, na primeira metade de 1945, perto do término da Segunda Guerra Mundial, minha família se mudou para Ribeirão e foi morar no número 1400 da Rua São Sebastião.

Não me agradou nem um pouco sair de São Paulo. Tudo porque adorava a cidade, sobretudo o centro, cujas ruas percorria a pé todos os dias, fazendo cobranças e entregas para a loja de autopeças em que eu trabalhava.

Nessa época, o centro de São Paulo passava por uma completa transformação – novas avenidas, como a Duque de Caxias e a Rio Branco estavam sendo abertas; tubulações eram trocadas... E, devido ao meu trabalho, pude acompanhar parte dessa transformação. Gostava de observar os operários trabalharem, ver os prédios (alguns com pouco mais de dez anos de existência) sendo demolidos e as ruas sendo rasgadas por buracos enormes. Às vezes, dava uma escapada e ia até ao lado do Teatro Municipal, para dar uma olhada na estátua dos três cavalos soltando água pelas narinas e nas imagens dos personagens de ópera. Com freqüência, visitava a Galeria Prestes Maia, onde sempre havia exibições de cinejornais, curtas-metragens e desenhos animados. Nessas minhas andanças pelas ruas centrais de São Paulo, descobri bancas de jornal que vendiam apenas publicações usadas. Na verdade, não eram bancas de jornal, mas sim vendedores ambulantes que expunham revistas usadas nas escadarias dos bancos, por volta das cinco horas da tarde, após o final do expediente. Eu ficava encantado com as capas de números antigos das revistas pulp Detective, Mistérios, Lupin... Costumava também parar diante dos cinemas e ficar olhando os cartazes das fitas que estavam sendo exibidas. Isso tudo foi formando meu universo. E, como sempre tive uma vida interior muito intensa, esse universo foi se agigantando em meu espírito. E, de repente, tudo isso foi arrancado de mim, com a mudança para Ribeirão Preto. Senti-me, então, como um passarinho que vive solto na floresta e repentinamente é preso numa gaiola.

Porém, não fui direto para Ribeirão. Fiquei um tempo, talvez uns seis meses, em Santa Rita, na casa de tio Caetano, que era cunhado de meu pai.

Num sábado à tarde – na semana seguinte, meus pais e minhas três irmãs, Célia (ela faleceria em 1945, com apenas treze anos de idade, vítima de um câncer no baço), Lélia e Daisy, se mudaram para Ribeirão –, um de meus primos, Renato, veio me buscar; e embarcamos num trem da Mogiana, na Estação da Luz. Em Porto Ferreira, saltamos e pegamos um trem de bitola estreita que ia até Santa Rita. A viagem toda durou umas oito horas.

Adorei os meses que passei em Santa Rita. Passava boa parte do tempo lendo e escrevendo. Às vezes, ia ao cinema.

Em Santa Rita, havia apenas um cinema. Ele não era muito grande (devia ter uns duzentos ou trezentos lugares) e ficava a poucos metros da casa dos meus tios, numa esquina. Nas sessões da tarde, cobrava ingressos baratos, já que exibia filmes e seriados americanos produzidos, em sua maioria, entre 1936 e 1941. Eram sessões duplas, ou seja, exibiam normalmente dois filmes e dois capítulos de dois seriados diferentes. Recordo-me de ter assistido ali a diversas fitas da série Os Anjos da Cara Suja (da Monogram Pictures), alguns filmes da atriz mirim Shirley Temple (Suzana, A Princesinha, O Pássaro Azul) e vários seriados (A Deusa de Joba, A Sombra do Escorpião, A Volta de Dick Tracy, O Misterioso Doutor Satan, Os Tambores de Fu Manchu, A Garra de Ferro, entre outros), muitos dos quais dirigidos pelo prolífico William Witney. Recordo também que vi uma infinidade de faroestes poeira e Patrulha da Madrugada, um filme cuja trama se passa durante a Primeira Guerra Mundial. Nas sessões da noite, eu ia raramente, porque o ingresso era mais caro, uma vez que eram exibidas fitas mais recentes. Lembro-me de que, numa dessas sessões, assisti, na companhia de uma das minhas primas, a Elina, ao noir Capitulou Sorrindo. Uma das poucas coisas – senão a única – que guardei desse filme, que, anos mais tarde, descobriria ser uma adaptação de um romance de Detetive & Mistério escrito por Dashiell Hammett, foi o nome da atriz: Bonita Granville. Não sei explicar a razão de minha memória haver guardado o nome de Bonita Granville, e não os nomes dos atores principais da fita, Brian Donlevy, Veronica Lake e Alan Ladd. Mais ou menos o mesmo aconteceu com um filme do qual não tenho lembrança sequer do título, mas me lembro de uma única cena, que nunca esqueci: a do ator Lew Ayres, num travelling de recuo, caminhando pela rua e fazendo movimentos com uma bengala tipo bastão, que segura, com ambas as mãos, pelas extremidades. São os mistérios insondáveis da mente humana.

Passei também muitas tardes observando o trabalho do pintor Biagini, que estava restaurando a igreja matriz, e até o ajudei a pintar alguns enfeites das paredes.

Gostei de Santa Rita e de conviver com meu tio, minhas tias (Adelina e Assumpta) e meus primos e primas. Gostei tanto que não queria ir embora dali. Por mim, teria ficado o resto da minha existência naquela pequena e pacata cidade. Mas – sempre existe um mas –, certo dia, o nonno chegou e levou-me para Ribeirão Preto.

R F Lucchetti
Enviado por R F Lucchetti em 06/03/2015
Código do texto: T5160393
Classificação de conteúdo: seguro