Notável (publicado originalmente em 18/11/2014)
A sazonalidade é a arte de saber esperar bons frutos. Trabalhar à parte, em projetos distintos, se encucar com o que realmente vale o esforço, se transforma em exercício pleno quando o resultado brilha. Anna Muylaert, cineasta (diretora, roteirista, produtora etc), realizou, e já foi tema aqui nesta coluna, os magistrais ‘Durval Discos’ (2002) e ‘É Proibido Fumar’ (2009). O intervalo de sete anos e a coincidência de os longas-metragens serem de qualidade esmerada não são à toa. Três anos depois, em 2012, fez ‘Chamada a Cobrar’. Assisti-o noutro dia. Simplesmente notável. Anna acertou de novo.
O fato banal, mas perigosíssimo, do falso-sequestro, aqueles onde os presos passam trotes via celular, da cadeia, informando que algum ente querido está em suas garras, é explorado numa trama repleta de boas interpretações e de dignidade. Na história, Clarinha (Bete Dorgam) é uma mulher de classe alta, boa educada, mas que trata Dalva (Cida Almeida) como escrava. O cotidiano de paz, pura tranquilidade, é interrompido quando a abastada recebe um telefonema. Primeiro, a inocente revela os nomes das filhas, e depois o falso-sequestro se confirma. E Clarinha cai como uma plena patinha.
A fita é praticamente dominada pela personagem de Bete. Estupenda e forte na tela, a atriz é o chamariz para o roteiro também escrito por Anna. Desesperada, Clarinha sai de casa aos berros e o carro é o cenário de cerca de 80% de ‘Chamada a Cobrar’, na viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro. Aos poucos, a protagonista é ‘obrigada’ pelos bandidos a rever os seus conceitos de vida, como a sua relação de patroa com a empregada e com as três filhas. Clarinha, óbvio, está desnorteada. À medida que o tempo passa, o desespero se consolida. Este medo do irreal dá o tom à obra da Anna Muylaert.
‘Chamada a Cobrar’, na verdade, é uma pretensa continuação (sem sê-la) de ‘Para Aceitá-la, Continue na Linha’ (2009), trabalho da cineasta feito para a TV. Tem os mesmos personagens, narra praticamente a história igual etc. Em ambos, o cartunista Lourenço Mutarelli faz uma ponta como o delegado com o vício de conversar desenhando em sulfites. A participação especial dele, aliás, é uma praxe nas realizações de Anna Muylaert. Basta lembrarmos de Rita Lee em ‘Durval Discos’ e Antônio Abujamra (seu ex-sogro) em ‘É Proibido Fumar’. E estes pequenos ‘adereços’ fazem o filme crescer.
A cena quase derradeira, de Clarinha distribuindo bichos de pelúcia aos pobres do Realengo, bairro aonde foi parar graças aos falsos sequestradores, é simultaneamente cativante e degradante.
‘Chamada a Cobrar’ tem classificação de 12 anos e 70 minutos de duração. Avaliação: ótimo.