Dona Lúcia, Paloma e o ‘Templo’ (publicado originalmente em 30/9/2014)
A minha confissão – já fiz algumas nestes mais de dez anos de coluna – desta vez é barata e a sutileza ela beira: dona Lúcia Rocha, a mãe do cineasta Glauber Rocha, morreu dia 3 de janeiro deste 2014 que nos levou um bocado de gente boa e só poucos dias atrás soube disto. Tinha 94 anos (faria 95 13 dias depois) e se foi em casa, repentinamente, de infarto. Estava bem de saúde. No Brasil culto do século XX mulher como ela não existiu. Nem de longe. Ou uma mãe como dona Lúcia. Viu todos os três filhos morrerem. O último exatamente Glauber, aos 42, em 1981 (ela contava 62 anos). Desde o desaparecimento dele, dona Lúcia teimou em guardar, reservar os 100% do acervo do filho famoso.
O ‘Tempo Glauber’, criado em 1983, era representação do Cinema Novo por meio dos filmes, cartas, desenhos, fotos etc de Glauber Rocha. Estava tudo ali. Localizado no bairro Botafogo, virou a referência aos cinéfilos e amantes da arte. Pois bom. Eis que há 12 dias li reportagem do UOL em que Paloma, filha do cineasta, revelou que o ‘Tempo Glauber’ provavelmente fechará as portas em meses. Talvez aguente até dezembro. Não se sabe. O ocorrido, estamos cansados de saber: o governo federal liberava a verba para o lugar funcionar. A torneira fechou em 2010 e ponto final. Paloma admitiu que por isto teve de demitir a dúzia de funcionários que lá labutavam. Dona Lúcia mantinha a instituição com os próprios recursos. Agora ela não está mais aqui e a neta não tem como arcar com as despesas. Promessas de novos incentivadores e patrocinadores, ouviu demais. Nenhuma delas se concretizou.
Sou leigo sobre estas leis de captação de recursos. Mas aí vejo, por exemplo, Maria Bethânia e Cláudia Leitte receberem deste mesmo governo milhões de reais. Os tostões servem para as artistas montarem shows e etc. Parabéns, malgrado eu creia que, sinceramente, cá entre nós, a dupla sequer necessite do montante. Repito: sou leigo no assunto. Entretanto, porque não se pode disponibilizar a quantia básica, reles, para que Paloma possa manter o ‘Tempo Glauber’? Quanto custaria aos cofres da Viúva, como se refere o jornalista Élio Gaspari ao governo federal? Cem mil por ano? Dez mil por mês? Meio milhão por ano? Não sei.
Cláudia Leitte, Maria Bethânia, isso sei, poderiam muito bem se virar sem o nosso suado trocado. Consola-me saber, pelo menos, é que praticamente todo o material glauberiano está devidamente estocado, digitalizado e arquivado na Cinemateca Brasileira (os filmes, 22), Instituto Moreira Salles (desenhos). ‘Quando transferir o que falta a um lugar seguro, e pretendo fazer isso até o fim do ano, não sei o que vai ser daquilo... E isso não é mais uma grande preocupação pra mim. É a preocupação do Estado. Minha parte está feita. A obra está restaurada’, disse Paloma.
Nunca fui ao Rio. O sol escaldante de lá não me interessa. Porém, se um dia eu fosse, o único local que iria seria o ‘Tempo Glauber’. Bem que dona Lúcia poderia ter batizado como ‘Templo’. Mas a letra ‘L’ é um mero deslize se nos concentrarmos no que está por vir. A elucubração me vem para os meus botões: pode ser que o ‘Tempo Glauber’ de fato tenha cumprido sua missão. Os 22 trabalhos de cinematografia de Glauber estão preservados à eternidade, os livros, artigos e teses sobre ele pululam diariamente, e a entidade não tem mais razão de ser. Deus me perdoe, mas não compartilho com esta afirmação. Glauber Rocha tem de seguir com a paragem. Desmontar tudo será um tremendo baque.
Conheci o diretor há exatos dez anos. ‘Conhecer’ é modo de dizer. Aos 22 anos, assisti ao tão citado aqui documentário ‘Glauber Rocha: Labirinto do Brasil’ (2004), de Silvio Tendler. Fiquei com o queixo caído, maravilhado. A partir daí, segui seus filmes, capturei seus sentimentos de brasilidade e contribuí comigo mesmo ao me abastecer com a trajetória inglória, mágica de sua existência. Saber do fim de ‘Tempo Glauber’ é desgastante e intrigante. Lá se vai, mais uma vez, o revolucionário. Sai pela porta dos fundos, ao contrário de 81, quando o mesmo Tendler filmou. Então, nos resta esperar.