Quem faz os filmes?
(Miguel Carqueija)
Uma controvertida questão em torno do cinema:
QUEM FAZ OS FILMES?
A TV Educativa vinha exibindo uma série intitulada “Take-off”, mostrando entrevistas com gente de cinema. Não artistas, mas cineastas de Hollywood. Numa destas entrevistas apareceu o grande Roger Corman, tido e havido como o mestre dos chamados “filmes B”. Corman foi diretor até 1971; depois concentrou-se na produção, que já exercia junto com a direção. Somente voltou a dirigir em 1990, quando rodou a obra-prima “Frankenstein unbound”; depois parou de novo.
A certa altura da entrevista, Corman — cito de memória, portanto não posso transcrever palavra por palavra — fez uma importante declaração. Segundo ele, “na grande tradição de Hollywood, a principal figura do filme é o produtor”. Em seguida exemplificou com grandes produtores do passado, como Samuel Goldwyn, que influenciavam decisivamente em seus filmes. “Isto mudou recentemente”, acrescentou Corman. Ressaltou, porém, que ainda existem produtores com força suficiente para realmente mandarem em seus filmes.
Claro está que o próprio Corman é um deles. E assim, contrariando a convenção da mídia, de atribuir a autoria principal de um filme ao diretor, lemos em embalagens de vídeo (*): “de Roger Corman”, embora ele já não dirija.
A citada entrevista veio ao encontro daquilo que eu reconheço e defendo há muitos anos. Em criança eu já era aficcionado de Walt Disney, ia com meus pais assistir os seus filmes. E todo mundo que ia, para assistir “Peter Pan”, “Vinte mil léguas submarinas”, “Cinderela”, “A bela adormecida”, “Os segredos da vida”, “No coração da floresta”, “Felpudo, o cão feiticeiro”, “O drama do deserto” ou “A dama e o vagabundo”, ia para ver filmes de Walt Disney. Eu não sabia que Disney era o produtor: só sabia que as películas eram dele. Isso era universalmente reconhecido. E foi preciso que passassem muitos anos para que eu começasse a ver, na imprensa especializada, certas abobrinhas que me causam revolta. Ou seja: nas súmulas das programações de cinema, tv, mostra, e também do mercado de vídeo, mencionarem, por exemplo,”Peter Pan” como “de Hamilton Luske, Clyde Geronimi e Wilfred Jackson. E até, “Branca de Neve e os sete anões” como “de David Hand”.
Que quer isso dizer? Os três antes mencionados dirigiram “Peter Pan” para Walt Disney, em 1952. E David Hand dirigiu “Branca de Neve”. Mas toda a vida sempre se soube que “Branca de Neve” é um projeto pessoal de Walt Disney, chamado até “a loucura de Disney” (era na década de 30 e ninguém até então tivera a ousadia de realizar um desenho animado longo), um projeto no qual ele se empenhou de corpo e alma. Os documentos do próprio Estúdio Disney reconhecem isso. Walt Disney, a meu ver o maior gênio da história do cinema, impunha o padrão moral e artístico das suas produções — filmes “para toda a família” — e foi preciso chegarmos a essa era um tanto obtusa em que vivemos, para que os jornalistas especializados, ao se referirem a fitas produzidas especialmente por Walt Disney, refiram-se a elas como “produções da Disney” (da companhia Disney) e não “de Disney”, a pessoa, o cineasta. E só creditam o diretor.
“Cinema é trabalho de equipe”, admitiu o crítico Sylvio Gonçalves em conversa comigo, quando puxei o assunto da posição dos produtores. Ao que ele me disse, o reconhecimento do diretor como autor é por ser ele quem faz a “arte final” do filme, ou seja, a filmagem em si. Só que a arte final, como depois eu refleti, não é nem com o diretor, mas com o editor, o responsável pela montagem, que possui assim um grande poder sobre a produção cinematográfica. Existe também o roteirista, responsável pela base escrita da obra. Um bom roteiro é muito importante e pode pesar mais que a direção ou a produção. Atualmente Ingmar Bergman abandonou a direção, mas sua assinatura no roteiro acaba chamando mais atenção que o resto.
Não será um preconceito achar que o produtor, por ficar nos bastidores, é uma espécie de intrometido que interfere com a criatividade do diretor? O ator Anthony Quinn, ao completar oitenta anos, deu uma longa entrevista na qual declarou haver trabalhado em 350 filmes diferentes. E segundo ele, os diretores em sua maioria nem entendiam ao certo o que estavam fazendo, eram apenas “diretores de trânsito”, ou seja, ficavam dizendo aos artistas como deviam se mover... Não é pois de espantar que muitos produtores sejam realmente cineastas marcantes, que impõem seus estilos, como George Pal, David O. Selznick, Francis Ford Coppola, Ivan Tors, Sam Katzman, Carl Foreman, Osvaldo Massaini ou George Lucas. E que uma animação produzida por Tim Burton, e dirigida por um ilustre desconhecido, apresente o seguinte titulo: “O estranho mundo de Jack de Tim Burton”. Ou seja: o próprio titulo diz que o filme é do produtor!
E se ainda lhes sobrar alguma dúvida, sugiro que assistam o “Carnossauro” do genial Roger Corman — porém com direção de Adam Simon — e reencontrem aí o mesmo espírito irônico de tantos filmes que Corman dirigiu.
Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1995 a 11 de fevereiro de 1996.
(*) agora dizemos embalagens de DVD.
(Artigo publicado no Portal Entretextos em 29/10/2012)
(Miguel Carqueija)
Uma controvertida questão em torno do cinema:
QUEM FAZ OS FILMES?
A TV Educativa vinha exibindo uma série intitulada “Take-off”, mostrando entrevistas com gente de cinema. Não artistas, mas cineastas de Hollywood. Numa destas entrevistas apareceu o grande Roger Corman, tido e havido como o mestre dos chamados “filmes B”. Corman foi diretor até 1971; depois concentrou-se na produção, que já exercia junto com a direção. Somente voltou a dirigir em 1990, quando rodou a obra-prima “Frankenstein unbound”; depois parou de novo.
A certa altura da entrevista, Corman — cito de memória, portanto não posso transcrever palavra por palavra — fez uma importante declaração. Segundo ele, “na grande tradição de Hollywood, a principal figura do filme é o produtor”. Em seguida exemplificou com grandes produtores do passado, como Samuel Goldwyn, que influenciavam decisivamente em seus filmes. “Isto mudou recentemente”, acrescentou Corman. Ressaltou, porém, que ainda existem produtores com força suficiente para realmente mandarem em seus filmes.
Claro está que o próprio Corman é um deles. E assim, contrariando a convenção da mídia, de atribuir a autoria principal de um filme ao diretor, lemos em embalagens de vídeo (*): “de Roger Corman”, embora ele já não dirija.
A citada entrevista veio ao encontro daquilo que eu reconheço e defendo há muitos anos. Em criança eu já era aficcionado de Walt Disney, ia com meus pais assistir os seus filmes. E todo mundo que ia, para assistir “Peter Pan”, “Vinte mil léguas submarinas”, “Cinderela”, “A bela adormecida”, “Os segredos da vida”, “No coração da floresta”, “Felpudo, o cão feiticeiro”, “O drama do deserto” ou “A dama e o vagabundo”, ia para ver filmes de Walt Disney. Eu não sabia que Disney era o produtor: só sabia que as películas eram dele. Isso era universalmente reconhecido. E foi preciso que passassem muitos anos para que eu começasse a ver, na imprensa especializada, certas abobrinhas que me causam revolta. Ou seja: nas súmulas das programações de cinema, tv, mostra, e também do mercado de vídeo, mencionarem, por exemplo,”Peter Pan” como “de Hamilton Luske, Clyde Geronimi e Wilfred Jackson. E até, “Branca de Neve e os sete anões” como “de David Hand”.
Que quer isso dizer? Os três antes mencionados dirigiram “Peter Pan” para Walt Disney, em 1952. E David Hand dirigiu “Branca de Neve”. Mas toda a vida sempre se soube que “Branca de Neve” é um projeto pessoal de Walt Disney, chamado até “a loucura de Disney” (era na década de 30 e ninguém até então tivera a ousadia de realizar um desenho animado longo), um projeto no qual ele se empenhou de corpo e alma. Os documentos do próprio Estúdio Disney reconhecem isso. Walt Disney, a meu ver o maior gênio da história do cinema, impunha o padrão moral e artístico das suas produções — filmes “para toda a família” — e foi preciso chegarmos a essa era um tanto obtusa em que vivemos, para que os jornalistas especializados, ao se referirem a fitas produzidas especialmente por Walt Disney, refiram-se a elas como “produções da Disney” (da companhia Disney) e não “de Disney”, a pessoa, o cineasta. E só creditam o diretor.
“Cinema é trabalho de equipe”, admitiu o crítico Sylvio Gonçalves em conversa comigo, quando puxei o assunto da posição dos produtores. Ao que ele me disse, o reconhecimento do diretor como autor é por ser ele quem faz a “arte final” do filme, ou seja, a filmagem em si. Só que a arte final, como depois eu refleti, não é nem com o diretor, mas com o editor, o responsável pela montagem, que possui assim um grande poder sobre a produção cinematográfica. Existe também o roteirista, responsável pela base escrita da obra. Um bom roteiro é muito importante e pode pesar mais que a direção ou a produção. Atualmente Ingmar Bergman abandonou a direção, mas sua assinatura no roteiro acaba chamando mais atenção que o resto.
Não será um preconceito achar que o produtor, por ficar nos bastidores, é uma espécie de intrometido que interfere com a criatividade do diretor? O ator Anthony Quinn, ao completar oitenta anos, deu uma longa entrevista na qual declarou haver trabalhado em 350 filmes diferentes. E segundo ele, os diretores em sua maioria nem entendiam ao certo o que estavam fazendo, eram apenas “diretores de trânsito”, ou seja, ficavam dizendo aos artistas como deviam se mover... Não é pois de espantar que muitos produtores sejam realmente cineastas marcantes, que impõem seus estilos, como George Pal, David O. Selznick, Francis Ford Coppola, Ivan Tors, Sam Katzman, Carl Foreman, Osvaldo Massaini ou George Lucas. E que uma animação produzida por Tim Burton, e dirigida por um ilustre desconhecido, apresente o seguinte titulo: “O estranho mundo de Jack de Tim Burton”. Ou seja: o próprio titulo diz que o filme é do produtor!
E se ainda lhes sobrar alguma dúvida, sugiro que assistam o “Carnossauro” do genial Roger Corman — porém com direção de Adam Simon — e reencontrem aí o mesmo espírito irônico de tantos filmes que Corman dirigiu.
Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1995 a 11 de fevereiro de 1996.
(*) agora dizemos embalagens de DVD.
(Artigo publicado no Portal Entretextos em 29/10/2012)