O príncipe sujo (publicado originalmente em 1/7/2014)
Era uma vez um príncipe sujo. Banhava-se na lama, comia olhos de insetos e tinha como seu esporte predileto aterrorizar os habitantes da vilinha onde vivia. Verde, gordo, feio, dentes imundos e de gestos obscenos, como arrotar alto e xingar os vizinhos, Shrek, o ogro, estava muito bem até ter o pântano onde morava ser tirado dele. A ameaça o fez prometer resgatar a princesa Fiona no alto da torre do castelo do reino de ‘Tão Tão Distante’. Conseguiu o objetivo, e, além disto, conquistou como amigo o Burro, sujeito indiscreto e falastrão. Shrek teve de passar por um dragão manhoso e muitos obstáculos perigosos, como todo conto de fadas tem de ter. Não para por aí.
No ínterim, Shrek está à volta com personagens encantados, como Pinóquio, Robin Hood, o Biscoito, os Três Porquinhos, os Ratinhos Cegos etc. Na bem bolada história de William Steig, publicada em livro, e adaptada à telona pelos diretores Andrew Adamson e Vicky Jenson, em quatro partes, entre 2001-2010, são os opostos os protagonistas da trama cômica. Na verdade, a moral é saber compartilhar as belezas e afirmar que a primeira impressão não precisa necessariamente ficar. Shrek e Fiona são prova: o amor é a pureza.
É no segundo ‘Shrek’ que conhecemos talvez o personagem mais carismático do longa, até na frente do Burro: o Gato de Botas. Com o olharzinho de pena, de dó, e o sotaque caribenho (na versão dos Estados Unidos, a original, foi dublado por Antonio Banderas), o Gato fez tanto sucesso que teve o seu próprio filme, cerca de dois anos atrás. A principal arma de Steig, muito bem explorada pelos 2 diretores e a turma de roteiristas, é juntar nas fitas os seres cheios de pó que estavam encostados nas prateleiras, como a Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, Capitão Gancho, a Madrasta, enfim, destes contos infantis que qualquer criança sabe de cor. E o script coloca-os em situações até humilhantes, como se embebedando no bar, com traços de mendicância.
Fiona, a princesa com o feitiço contrário, pois de dia é bela e à noite é a ogra, e fica como tal quando ela e Shrek se apaixonam, é a mocinha de historinhas bem longe da Carochinha. Ela é mandona, tem posições firmes, toma a dianteira quando os problemas maiores ocorrem. Em resumo: é a mulher moderna, do novo século, mas vestida da cor verde, acima do peso, de olhões esbugalhados, de sinceridade e carisma indiscutíveis, além de terna.
O primeiro ‘Shrek’, de 2001, fez tanto barulho e agradou demais. Foi indicado a melhor filme para ter ideia. Ganhou, e isto era óbvio, a estatueta de animação em longa-metragem – a primeira, aliás, da história da Academia, pois a categoria foi colocada na disputa a partir daquele ano. ‘Jimmy Neutron’ e ‘Monstros S/A’ concorreram com o filme.
O de 2004 também brilhou, mas não levou seus prêmios de outrora. Esteve presenta na lista do Oscar de canção (perdeu pra ‘Diários de Motocicleta’) e animação (‘Os Incríveis’ ganhou). As sequências de 2007, 2010 não conquistaram a crítica como os anteriores, agradaram ao público. O derradeiro, ‘Shrek para Sempre’, tem o vilão Rumpelstiltskin, a espécie de Mister Mxyzptlk, arqui-inimigo do Superman que mexia e alterava as realidades ao redor. Shrek, como no filme ‘A Felicidade não se Compra’ (1944), revê a sua trajetória e como seria a cidade onde vive caso ele não existisse, ou não tivesse conhecido determinadas pessoas. Armações que são elaboradas pelo tal Rumpelstiltskin, que faz com que o ogro assine um contrato. Shrek quer reviver o tempo em que assustava as pessoas, não tinha esposa e filhos, uma família. É claro: ele se arrepende.
Evidentemente, os quatro ‘Shrek’s têm bastante a ver com o nosso cotidiano. Trata-se de uma aberta crítica ao sistema de beleza engessada, das modelos magérrimas, cabelos lisinhos e etc e tal. A moda ‘feia’ do ogrão verde, longe de ser parecido com um extraterrestre, pegou. Shrek se tornou sim um símbolo de, quem sabe, gerações. Ao lado de Fiona, o príncipe sujo lambe feridas doces da vida.