As câmeras tremidas (publicado originalmente em 24/6/2014)
A memória, creio, não está falha. A única vez em que escrevi sobre Amácio Mazzaropi neste espaço foi dez anos atrás, em uma das primeiras colunas. Passada a década, o crítico de cinema Celso Sabadin realizou o documentário sobre o cineasta. Trabalho honesto, diga-se. Sabadin concentrou os esforços para montar um filme coeso e formal: entrevistas e depoimentos mesclados com imagens de fitas do eterno Jeca Tatu.
À medida que o longa avança, topamos com personalidades já falecidas – Hebe Camargo, Gustavo Dahl, Marly Marley, por exemplo – e outras que estão por aí, como Ewerton de castro, David Cardoso, Selma Egrei, Ary Toledo etc. O mote do diretor é buscar informações sobre o comportamento de Mazzaropi nos bastidores. Conhecemos pinceladas: ele era mão-de-vaca, muito centralizador e, de certa maneira, ranzinza. Após comprar o largo espaço às suas filmagens, jamais o emprestou a alguém. Também há surpresas (pelo menos pra mim). Não sabia que o crítico de cinema Inácio Araújo havia participado como editor de ‘Jeca Macumbeiro’ (1975). ‘Nunca havia visto filmes de Mazzaropi. Não me interessava, meus pais tinham pouco costume de me levar ao cinema’, contou.
Por fim, algo que nunca havia sido propalado nos quatro cantos, Celso Sabadin levanta a bola e Marly Marley corta: ‘Mazzaropi sempre se sentiu meio retraído, tímido até. Era no fundo carente e queria carinho. Talvez essa retração se devesse por conta de ele ser homossexual.’ Para muitos fãs do ator, diretor, sequer pensar na possibilidade de ele ser gay era motivo de revolta, principalmente aos admiradores mais velhos. Meu sogro e minha avó estão nesta lista.
Mas o burburinho se fez verdade e pelo menos este mito caiu por terra. David Cardoso revela: ‘Uma vez reclamei a ele que gostaria de ser galã de um filme dele. Eis que me respondeu: Cardoso, é só você passar uma noite comigo que eu faço de você o maior galã do Brasil.’ Há uma cena hilária na qual Cardoso relata uma passagem onde Mazzaropi e ele bailaram ao som duma valsa, de ‘rostinho colado’. Aspectos cinematográficos acerca das filmagens sobram, porém contam e revelam pouco. Narrar as estripulias de falta de figurino, das sequências sem qualquer cuidado com a continuidade, e os improvisos nos momentos das gravações são informações batidas. Mazzaropi era meio mambembe e o público gostava. Diz Ewerton de Castro sobre ‘deslizes’ das películas da PAM (Produções Amácio Mazzaropi): ‘Sabe, o público não percebia.’
Trechos de fitas famosas permeiam o documentário. ‘O Corintiano’ (1967), ‘Chofer de Praça’ (1959), ‘Jeca Tatu’ (60) e ‘Sai da Frente’ (1952), primeira aparição do artista nas telonas. Do mesmo modo, emociona ver Hebe Camargo (1929-2012) falar. Ao lado de Agnaldo Rayol, a eterna dama da TV brasileira está em ‘Zé do Periquito’ (1960), num número musical. Notamos a incrível capacidade do taubateano Mazzaropi em elaborar verdadeiros sonhos da sétima arte com raríssimo dinheiro – a verba era escassíssima, os cenários se repetiam (o enredo, idem) e suas mensagens morais, quase em todos os desfechos das obras, estavam lá. A câmera não era lá essas coisas. David Cardoso desvenda o mistério: ‘O Mazzaropi não se conformava, dizia que as filmagens do Glauber Rocha eram tremidas como as dele e o povo aplaudia!’ Em uma declaração ao fim do documentário, o cineasta confirma a tese: ‘Não posso me preocupar com a crítica porque ela não paga os atores, não paga a distribuição às salas. Faço filmes pro povo. Troféu não paga o filme.’ Taxativo, bastante sincero, pelo menos ele era.
O 13 de junho é o 33º aniversário da morte do cineasta. Um dos depoentes conta que o ator e diretor estava muito doente há algum tempo. Tinha leucemia e várias vezes interrompia as filmagens para se tratar. Afinal, Celso Sabadin conseguiu arrancar um produto satisfatório e faltava realmente um documentário a esclarecer determinados pontos de sua biografia. O Vale do Paraíba deve muito a ele. O cinema nacional igualmente teria de reverenciá-lo. O preconceito a seus filmes vem de longe e ainda existem aqueles que têm repulsa ao caipira. Mazzaropi nos fez acreditar num Brasil inocente.