A boa e fiada conversa (publicado originalmente em 10/6/2014)
O cinema paulistano, o legítimo, tem nome: Ugo Giorgetti. Tempos atrás escrevi sobre ‘Festa’ (1989), o principal trabalho do diretor. Hoje teço comentários acerca de outra obra de arte: ‘Boleiros: Era uma Vez o Futebol’ (1998). Abraçar as realizações de Giorgetti é fácil. Ele transforma as histórias banais, no bom sentido, em atrações imperdíveis, detalhadas. ‘Boleiros’, por exemplo, nada mais é do que uma conversa de cinco ou seis amigos de longa data. A turma se reúne sempre no mesmo local e relembra os tempos idos, quando a vida tinha mais sabor, as escolhas não eram pedras no sapato e os problemas se resolviam com o mero tapinha nas costas. Otávio (Adriano Stuart), Ari (João Acaiabe), Juiz (Rogério Cardoso), Naldinho (Flávio Migliacio) e Tito (Oswaldo Campozana) papeiam e a partir das narrações deles vemos as tramas passadas décadas atrás. Todos eles vêm em série, passo a passo.
O caso do Paulinho Majestade (Aldo Bueno); o de Fabinho Guerra (Paulo Coronato) e os seus dribles no treinador (Lima Duarte), a ficar com amante (Marisa Orth); de Virgílio (Otávio Augusto), o árbitro corrupto; o de Azul (Cléber Colombo), jogador que foge da sua esposa (Denise Fraga) e está deslumbrado com ascensão meteórica (tem empresário –Antônio Grassi –participa da mesa-redonda de todo domingo, com Serginho Leite como um dos comentaristas), de Caco (André Bicudo), craque do Corinthians perseguido pelos três amigos de infância folgados (Eduardo Mancini, Robson Nunes e Adílson Pancho) etc. Além deles, há participações especiais de André Abujamra (pai Vavá), Cássio Gabus (Zé Américo, o repórter) e Cazé Peccini (locutor de rádio). Neste grupo de bons profissionais, Giorgetti não tem tanto trabalho. A experiência fala alto neste ponto. ‘Boleiros’ é mescla dos talentos.
Ironias rasgadas e humor até sádico são pontos centrais da obra giorgettiana. Há cenas deste ‘Boleiros’ que matam o público de rir e não é necessário fazer força a tanto. Relembrem quando Lima Duarte, o treinador, espera seu craque na porta do hotel, passando as mãos na careca reluzente. E no mesmo instante, Fabinho está no quarto com sua musa. Noutra, Virgílio implora de modo nervoso a que o time troque o batedor de pênalti, pra poder liquidar uma dívida, além de não dar impedimento também por conta da tal quantia que deve. Na mesa-redonda, a típica, todos os comentaristas têm de dar seus pitacos e o pobre Azul fica à mercê da trupe. Mas prefiro a dos três corinthianos e seu amigo Caco. Quando o Pai Vavá entra no set, o setor hilário do longa se sobressai. André Abujamra é gênio.
Quando assisto a fitas de Giorgetti tenho a sensação, a vontade de que preciso colocar paletó, a gravata, sapatos de bico fino e sentar no sofá com o jornal do dia. O ato de filmar o cotidiano, uma cena apenas, como é ‘Festa’, é digno de nota e aplauso. O cineasta já concedeu inúmeras entrevistas e nelas diz que é complicado fazer o tipo de cinema que ele faz no Brasil. É óbvio, mas deprimente. Se tivesse nascido na Europa ou nos EUA poderia estar no patamar de Ingmar Bergman, Mike Nichols ou Woody Allen. Não é exagero. A filmografia de Ugo Giorgetti tem seus atores prediletos e enredos semelhantes, apesar de as situações serem mais diversas. A conversa ao pé do ouvido, confidências e o chamado papo furado somam nesta panela de bom caldo. Algo idêntico ocorre com Anna Muylaert.
As personagens dos filmes de Giorgetti são comuns, com problemas e dilemas do cotidiano e a moral geralmente acima de qualquer suspeita. Ainda não vi ‘Boleiros 2: Vencedores e Vencidos’, de 2006, mas tenho a certeza de que não foge da estrutura de script do original. A cada nova empreitada o diretor se renova mostrando cenas, personagens e situações que se repetem ao longo da carreira. A preservação do trabalho de Giorgetti precisa estampar manchetes e se destacar nas mídias. Que pena isto não ocorrer. Como de praxe, suas fitas ficam restritas a raras salas e, como consequência, os seus espectadores também minguam. Colunista semanal –todos os domingos –no jornal ‘O Estado de São Paulo’, o cineasta sobrevive como todo o bom artista tupiniquim: se arrastando para ganhar ‘algum’.