As escolhas erradas (publicado originalmente em 13/5/2014)
O filme ‘Getúlio’ (2014) chegou. Se cedo ou tarde, isto é discussão a outra hora. O importante é seu lançamento. E justo dia 1º de maio, dia marcado nas décadas de 1940 e 1950 pelos inflamados discursos do presidente ‘Pai dos Pobres’. Posso estar enganado, mas longas-metragens acerca do são-borjense não existiam até então. Documentários, alguns. E de qualidade questionável. Este ‘Getúlio’, dirigido por João Jardim (‘Lixo Extraordinário’, 2010), marido de Carla Camurati (‘Carlota Joaquina’ – 1995), produtora-executiva, e roteirizado por George Moura (‘Gonzaga: De Pai pra Filho’ – 2012), tinha tudo para ser um marco, afinal não estamos acostumados a ver nossa história nas telonas. Mas o resultado e a decepção vieram a cavalo. Tudo isto por conta de escolhas erradas de elenco, somente isto. Engolir Tony Ramos no papel-título e Marcelo Médici como seu filho Lutero e Alexandre Borges como o jornalista Carlos Lacerda é a missão intragável. Os três personagens centrais destoam muito.
Sobre o primeiro, o óbvio. Ninguém discute o talento majestoso de Tony. Mas a parcimônia é amiga da emoção e da autenticidade. É impossível assistir a ‘Getúlio’ sem vir à nossa memória aquele comercial da carne, ou os dois filmes de humor ‘Se Eu Fosso Você’ (2006, 2009). Trata-se de um ator muito ‘usado’, no sentido poético da palavra. Ele está em todos os cantos. Dá entrevistas para lá e pra cá. Além disso, Moura incluiu no script uma cena lamentável e desnecessária. Durante o jantar com a filha Alzira (Drica Moraes, excelente, por sinal), a futriqueira e confidente, Getúlio se serve de boa e apetitosa fatia de filé. Ao dar a primeira garfada, Alzira pergunta: ‘Pai, a carne não está boa?’. Eis sua resposta: ‘Prefiro a de São Borja’. A minha dúvida é: para quê esta sequência? Se a finalidade foi dar o tom engraçado, o barco afundou. Aí, sinceramente, quem teve a vontade de se matar foi o público.
O gaúcho está na moda neste 2014 por ser o 60º aniversário de sua morte. O dia 24 de agosto entrou para a história junto com seu líder nacional. O jornalista Lira Neto lançou em 2012 e 2013 os dois primeiros volumes da biografia do político. Li ambos (o primeiro cobre o período 1882-1930 e o segundo 1930-1945 – o terceiro será lançado daqui a três meses e fechará com 1945-1954) e destaco a outra derrapagem do roteiro. Na fita, Getúlio é tratado como um bonachão bondoso e caridoso. Esta figura de ‘bom velhinho’ não condiz com o que foram os seus 18 anos de governo (1930 a 45 e de 1951 a 1954). O filme abrange os últimos 19 dias da vida dele. Vai desde o atentado na Rua Tonelero, onde Lacerda é ferido no pé e inicia a particular ‘caça à bruxa’, no caso, ao presidente, até o suicídio deste.
De Borges e Médici, pouco tenho a comentar. Foi tão infeliz a escalação da dupla que prefiro elogiar outros atores, como Drica. Além dela, Thiago Justino (Gregório Fortunato) e Fernando Luís (Benjamin Vargas, irmão de Getúlio, provável idealizador do atentado da Tonelero com Fortunato, o segurança do presidente) estão nos seus limites e conseguem fazer um bom trabalho. E outro ponto a favor é a locação. A maioria das cenas foi gravada no próprio Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, na sede do governo da época. Para encorpar Getúlio, Tony Ramos teve de usar enchimentos pra mostrar a barrigona da personagem. Em média, demorava duas horas para ele se arrumar. Detalhes cômicos, como o de que o presidente não sabia amarrar os cadarços dos sapatos, estão no filme. Outros mais importantes, como sotaque gaúcho, desapareceram. O cinema brasileiro peca por não ser esmerado.
Alguns dias atrás, o jornalista e diretor de redação da Folha de São Paulo, Otávio Frias Filho, escreveu que ‘Getúlio’ é persuasivo, didático. Concordo em termos. Seria convincente se neste elenco estivessem outros atores. Tenho a convicção de que figuras marcantes devem ser interpretadas quase sempre por artistas não tão conhecidos da mídia... ‘Getúlio’ tinha tudo a ser inesquecível e brilhante como registro. Coitado de nós. Coitado do Brasil... Ou melhor: coitado deste nosso cinema brasileiro.