O peso da história (publicado originalmente em 8/4/2014)

A cena mais significativa do filme ‘12 Anos de Escravidão’, lançado recentemente no país, é a que Salomon Northup está sendo enforcado numa árvore. Ele se debate, perde o ar a cada segundo, a corda insiste em apertá-lo. Está sozinho por ali. As mãos atadas. Tem dor, desespero, quase sufocado e morto. Bem a frente, alguns poucos metros separam, crianças brincam, divertem-se. A sequência é avassaladora. Não há música, trilha sonora. Os barulhos moucos ouvidos são da garotada e do corpo de Salomon se debatendo. Quatro minutos assim. Ele não morre. Ainda teria mais alguns anos para o escravo permanecer nele. A fita dirigida por Steve McQueen é difícil de digerir não porque a história é inverossímil a este patamar. Ao contrário. ‘12 Anos de Escravidão’ tem sutilezas cruéis, sádicas, vis e maquiavélicas. Jamais os EUA rodaram longa-metragem acerca de sua época de escravidão com a significância deste. Mas há razões. O drama é baseado no livro homônimo escrito por S. Northup que foi lançado em 1853. Doze anos antes, ele havia sido capturado por sequestradores em Washington e levado ao Estado da Louisiana, onde trabalhou em fazendas de algodão. Northup era letrado, músico e tinha uma vida de, à época, uma espécie de classe média. Era casado e tinha filhos. Duma hora para a outra, viu-se abandonado e vitimado por chicotadas, chibatadas e demais percalços de um escravo.

Chiwetel Ejiofor é Northup e a interpretação é impactante. Por ter trabalhado com diretores talhados, como Steve Spielberg (‘Amistad’, 1997), Woody Allen (‘Melinda e Melinda’, 2004), Ridley Scott (‘O Gângster’, 07) e o hoje aclamado Alfonso Cuarón (‘Filhos da Esperança’, 2006), mesmo que em papéis menores, o ator obteve experiência peculiar e impôs ao seu personagem de ‘12 Anos...’ um detalhe moral: o Northup de Ejiofor é sofrido, porém realista. ‘Quero sobreviver, só isso’, diz a Patsey (Lupita Nyong’o), a colega do pelourinho. O desespero é diário. Depois do rapto, Northup passa por dois ‘donos’ antes de cair nas garras de Edwin Epps (Michael Fassbender, estupendo), o sinhozinho. Epps é amante de Patsey. Esta é a detentora dos recordes da produção de algodão, pegando três ou quatro vezes mais que os demais. A senhora Epps (Sarah Paulson), ciumentíssima, agride a escrava e simultaneamente não consegue escapar das agruras conjugais. Há duas participações especiais: Paul Giamatti e Brad Pitt. O primeiro vive um mercador de escravos e surge logo no princípio da trama. É rude com Northup e o vende a Ford (Benedict Cumberbatch). O segundo é Bass, advogado, pedreiro e completo faz-tudo. Aparece no desfecho para libertar Northup de uma vez por todas. Pitt é um dos dez produtores de ‘12 Anos de Escravidão’ (McQueen também) e, claro, reservou a si o crucial papel.

Desde o ano retrasado ao passado três fitas chegaram ao cume de elogios e trataram do tema escravidão como o pano de fundo ou o assunto central. Todavia é enganoso acreditar que ‘12 Anos de Escravidão’ bebeu de ‘Lincoln’ e ‘Django Livre’, ambos de 2012. No roteiro de Quentin Tarantino, é a revolta dum escravo a linha da aventura. Django (Jamie Foxx) se torna matador e exímio caçador de recompensas. No segundo, o presidente americano tem de lidar com politicagem pra fazer passar no Congresso a lei que aboliria o regime escravista. Na produção de McQueen (indicada a nove Oscars, dentre eles filme, diretor, ator, ator coadjuvante a Fassbender, roteiro adaptado, atriz coadjuvante a Lupita, figurino, edição e direção de arte) é o tom cru que dá a magnitude. Apontar o melhor do trio é tarefa árdua. Se abordarmos o tema em si, ‘12 Anos...’ é disparado o mais bem acabado e ponto final. Porém, se analisarmos os detalhes, as atuações e a direção, somado ao script, suspeito que temos aí o empate dos três. ‘12 Anos...’ é uma realização que me empolgou pela beleza do artesanato no cinema, pois as sequências são aterradoras e assustadoras. Quando a ficção mira ao real, ao histórico, e neste há o peso da consciência, aí o resultado é espantoso. S. McQueen e elenco mostraram a que vieram.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 08/04/2014
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