Os simples de Anna (publicado originalmente em 1/4/2014)
E depois de muito esperar, consegui assistir a ‘É Proibido Fumar’ (2009), o segundo filme da diretora Anna Muylaert. Notei o quão expressivo é o trabalho dela, bom artesanal processo de ‘fazer o filme’. Anna trabalha com poucas pessoas na equipe, filma em São Paulo e escolhe a história que à primeira vista soa simplória demais, mas nós, os espectadores, sabemos se tratar de uma miniode ou a apologia ao caos silencioso. Em ‘É Proibido Fumar’ Glória Pires encarna Baby. Professora de violão, fumante inveterada e quarentona, a personagem vive enclausurada num apartamento médio e o seu maior desejo é ter o sofá que a tia morta lhe deixou de herança. Quando Max (Paulo Miklos) se muda ao prédio, a moça parece reviver. Apaixonam-se, mas ele detesta fumaça. Baby luta para livrar-se do vício. Ver Glória desesperada a repetir o mantra ‘O cigarro parece meu amigo, mas é meu inimigo’ é uma das cenas mais engraçadas da trama. Além disto, o roteiro escrito por Anna possui tons pueris, e nos identificamos, pois são situações comuns, cujas exibições adoramos ver nas telonas (pelo menos eu). Durante um jantar, Max reclama do salmão preparado por Baby. ‘Está meio seco. Não tem aí um molhinho?’. O relacionamento entre eles esfria quando Estelinha (Alessandra Colassanti), ex de Max e modelo de mão, surge. Baby ouve ruídos estranhos do vizinho. Não demora a que ela volte a fumar.
O primeiro trabalho de Anna na sétima arte, como longa-metragem, foi o espetacular ‘Durval Discos’ (2002). ‘É Proibido Fumar’ tem muito do primogênito. A cineasta lida em ambos com comida preparada pela pessoa amada, mas que não é tão boa assim (a comida); há as tragédias evitáveis nas duas, cujas penas podem ou não ser aplicadas (e nunca saberemos); existem ali personagens dotados de psicopatias (em ‘Durval Discos’, quem não se lembra de dona Carminha –Etty Fraser esplêndida– completamente maluca, tomada pelo sentimentalismo em relação à garota Kiki –Isabela Guasco; em ‘É Proibido Fumar’, Baby não escapa do cigarro, ciúme e a possessão); e as participações especiais, e mais que especiais. Na fita de 2009, por exemplo, temos o ex-sogro e o ex-marido de Anna, André e Antônio Abujamra, e Etty Fraser, Paulo César Peréio como dono de um botequim que exige que Max toque samba, noutra sequência antológica, Marisa Orth, Marcelo Mansfield, o inigualável Lourenço Mutarelli, a cantora Pitty, e o DJ Theo Werneck. São aparições afetivas, todos são amigos da diretora e duvido que cobraram cachê pra este trabalho. Ao todo, aproximadamente 30 pessoas coordenaram a produção e conseguiram um ‘feito’, que não imaginava ser possível: ‘É Proibido Fumar’ é tão bom, ou melhor, se o compararmos a ‘Durval Discos’. Filme brasileiro é isso e Anna Muylaert é fantástica.
Impressiona-me sobremodo como Anna trabalha com os atores. A direção apurada tem causa e motivo: ela veio de programa infantis e seriados, como ‘Mundo da Lua’ (1991-1992), onde exerceu o ofício de colaboradora no script. Bebeu da fonte de Roberto Vignati, Flávio de Souza, criadores desta atração. Mas não somente isto. Ela sabe ter os atores sob controle, ao mesmo tempo em que os deixa improvisarem numa linha finíssima entre o que pode e o que não pode ser feito. As cenas com atores que fazem participação especial são tão ou mais importantes do que as que envolvem os personagens principais. Seja a conversinha frouxa do elevador ou bate-papo entre corretor e provável comprador, ‘É Proibido Fumar’ tem recheio magnífico e concatena drama, comédia e romance durante os menos de 90 minutos de duração. Este, aliás, é outro fator a ser ponderado. Anna é perita em saber agrupar muitos conflitos em tempo escasso. Não por culpa dela. Fazer o simples, como sempre digo, é muito complicado e são raras as pessoas que sabem fazê-lo. Anna é uma delas. Como Machado de Assis, os escritos da cineasta não ‘inventam’. Dizem o que têm de dizer e estão longe de ‘encher linguiça’. Anna já está filmando ‘Que Horas Ela Volta?’, seu novo longa. Deve estrear em breve. Será ótimo, garanto.