‘A Grande Beleza’ (publicado originalmente em 25/3/2014)

Para se assistir a um blockbuster é preciso pouco ou quase nada de dedicação. Você se senta na poltrona, se esparrama no sofá – pode ser cama também – e delicia-se com pipocas, refrigerantes, petiscos etc. Mas se por acaso lhe cair às mãos obras de arte–aí explorar o terreno é complicado, pois definir obra de arte é difícil– prepare-se. Não adianta ver o tal filme de igual maneira do blockbuster.

Quando vi ‘A Grande Beleza’ (2013), ganhador do Oscar de filme em língua estrangeira neste 2014, me debrucei e já sabia que veria um espetáculo de primeira categoria. Basta pelo personagem Jep Gambardella (Toni Servillo). Aos 65 anos não tem mais que fazer da vida. Na juventude escreveu um livro elogiado pela crítica. Parou por aí. As páginas lhe deram fama.

Desde então Jep ‘se sustenta’ com o brilhareco, que lhe rendeu festas da alta sociedade, relacionamentos frugais, mulheres fáceis e conversas fiadas. A vida dele se altera quando sabe da morte de Elisa de Santis (Annaliusa Capasa), a primeira namorada, primeiro amor. Com a notícia, o jornalista depara-se com pensamentos fatais: o que fazer de agora em diante?, porque não consigo escrever livros?, como devo me comportar com os demais? Tudo em volta dele é fútil.

A decadência de uma sociedade é mostrada a nós. Roma, onde ele mora–o prédio fica ao lado do Coliseu (quer símbolo maior do que este?)–, é a cidade onde se respira o ar da moda antiquada, do papo puído, da cultura retrô no pior sentido, da riqueza sem algum nexo.

Logo nos minutos iniciais nota-se o fellinianismo na película dirigida e roteirizada por Paolo Sorrentino. A homenagem é ótima. Inspiração, idem. Lá estão as mini-histórias que parecem não ter sentido, os closes com os personagens mirando a câmera, o cheio onírico das situações, lembranças da adolescência muito bem vivida, a ironia ferina e perversa e o humor sofisticado, apurado e chique.

E Federico Fellini está presente também em outros instantes de ‘A Grande Beleza’. Quem não identificou Jep com Marcello (Marcello Mastroianni) em ‘A Doce Vida’ (1960)? Os questionamentos de ambos são pertinentes à época de cada um. Principalmente acerca dos amores vividos e os tantos arrependimentos pelos não vividos. Sorrentino bebeu demais de Fellini e fez um trabalho excelente.

O drama de Jep é uma incógnita. Vive como bon vivant e o hedonismo permeia o mundo em sua volta. De repente, ao saber da partida da paixão de outrora, ele tenta mudar. Ensaia apenas e não

chega a lugar algum. Com a vinda duma milagreira esquisita (Giusi Merli) ao município, o jornalista e escritor esbarra em outros dilemas similares aos fatais: a fé inabalável e a crença nas pessoas.

Qual é a razão de a vida do protagonista ser tão desinteressante e simultaneamente bastante incrementada pelas circunstâncias da sociedade grã-fina? Jep sabe bem que não tem saída. O destino é acabar com a notoriedade do livro de décadas atrás e ficar por isto mesmo. A editora anã, a chefe, é o estereótipo do cotidiano dele.

Enquanto debate com ela as pautas, almoça uma comida requentada – ‘Arroz de ontem sempre é o melhor’, diz. Nada que supere as amplas discussões com os amigos. São disparos sucessivos de agulhadas, humilhações e toma lá dá cá. Um não suporta o outro, porém convivem ali.

‘A Grande Beleza’ é rico na fotografia, roteiro e direção. Servillo é o nome do filme e já vem de outro trabalho com Sorrentino, ‘As Consequências do Amor’ (2004). Temos a chance de apreciar esta

Roma descaída, monótona de Jep. A fita passeia pelos escombros desta parte da Europa por meio da mente sórdida e maliciosa dele (a cena do velório é hilária e constrangedora ao mesmo tempo, assim como o antes, na escolha do vestido da acompanhante à cerimônia). Tudo falso, vão, acaba em nada.

‘Se nem Flaubert conseguiu escrever um livro sobre o nada, imagina eu’, é a frase preferida de Jep. Durante todo o longa ele escuta a pergunta: ‘Porque você não escreveu outro livro?’. Então, a resposta é sobre Flaubert. Mas o jornalista não sabe o que dizer, na verdade. Fellini aplaudiria? Creio que sim. ‘8 ½’ (1963) está aí para provarmos que não mentimos. ‘A Grande Beleza’ se iguala, enfim.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 25/03/2014
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