O bom remédio (publicado originalmente em 7/1/2014)
Quando um grupo, seja ele de qual setor for, tem muita fera espremida, das duas, uma: ou o trabalho rende elogios de Imaculada Conceição, ou é pisado, cuspido sem menor piedade. Nos times de futebol isto costuma ser comum. Se dois ou três craques precisam dividir a área, geralmente sobra encrenca. Quem não se lembra do Flamengo de 1995, com Edmundo, Romário e Sávio? Ou o Atlético Mineiro de 1994, com Renato Gaúcho, Neto e Gaúcho, ou o Corinthians de 1998 e 1999, com Rincón, Marcelinho e Edílson? Em todos eles haviam bate-bocas e até pancadaria dentro da equipe. Apenas o Timão se deu bem, faturou títulos, ainda que com arranca-rabos quase diários. No cinema, a questão é mais embaixo. No esporte bretão há egos inflados, mas na sétima arte o caso costuma criar mitos e / ou arruinar carreiras. Recentemente, o diretor Jon Turteltaub (de ‘Jamaica Abaixo de Zero’, 1993) e o roteirista Dan Fogelman (de ‘Carros’, 2006, e ‘Carros 2’, 2011) usaram de expediente bem parecido com o de ‘Red: Aposentados e Perigosos’ (2010) e chamaram somente as cobras para protagonizar ‘A Última Viagem a Vegas’, que estreou no mês passado: Kevin Kline, Robert DeNiro, Michael Douglas e Morgan Freeman. O roteiro é brincalhão e age a alfinetar as idades do quarteto. Eles são amigos de infância e se reencontram quase 60 anos depois à despedida de solteiro de um deles, Billy (Douglas).
Na festa vem Archie (Freeman), divorciado (o filho manda no pai, que sofreu leve derrame), Sam (Kline), cansado de ser casado há 40 anos (a esposa o libera para a farra, a fim de recuperar seu casamento), e Paddy (DeNiro), viúvo, mal humorado, reclamão, que cultiva uma inimizade com Billy por que o amigo não foi ao enterro da companheira Sophie. Os quatro vão a um super-hotel passar o fim de semana e lá aprontam tudo o que se tem direito: bebedeira, mulheres, festas, jogos... No meio disso tudo, conhecem Diana (Mary Steenburgen), a cantora de boate que invariavelmente canta às moscas. Por meio dela, revivem emoções, repensam situações e reaprendem o real valor da parceria.
Aos fatos: Douglas (69 anos), Kline (66), Freeman (76) e DeNiro (70) podem fazer o que lhes derem na telha. Similarmente ao que escrevi na última coluna de 2013 sobre Tom Hanks, não devem nada a ninguém. Estão acima do bem e do mal e conseguem ousar e estampar a velhice em sua plena forma. Vemos Douglas com o rosto recheado de plásticas e um bronzeamento bem artificial, Kline e a barba totalmente branca, DeNiro e Freeman, idem. Divulgar a terceira idade na telona e enfrentá-la a um palmo do nariz não é privilégio deles. Não volto muito longe e temos Jack Nicholson fazendo isso em ‘As Confissões de Schmidt’ (2002), onde o ator interpreta o aposentado sem perspectiva na vida.
‘A Última Viagem a Vegas’ tem um fraco script e uma direção molenga. Porém, Turteltaub foi esperto: de certa forma, como o longa-metragem conta com os quatro astros, ele, é sua ideia, exime-se de qualquer problema. É como se dissesse: ‘Se o filme der errado, não é culpa minha. Vejam, há os atores experientes em cena.’ O diretor joga a conta na mesa deles e quando em determinada cena o personagem de Douglas diz a um jovem ‘não acredito que você não conhece essas quatro lendas’, em referência a ele e aos amigos, sente-se uma pitada de nostalgia no ar. Os sessentões e setentões estão ali para brincar e fazer o público rir com suas dificuldades em enxergar sem os óculos, caminhar sem a bengala ou sorrir sem afrouxar a dentadura. Fazer autopiadas, paródias de si próprio que o grande Woody Allen já faz há décadas, pode ser um ótimo remédio para um fim de vida e de carreira felizes.
‘A Última Viagem a Vegas’ tem tempo ainda de fazer graça com o rapper 50 Cent, numa cena onde o cantor é expulso da balada onde estão os quatro mosqueteiros. A fita diverte e nos entretém.
Dez anos! – Em janeiro de 2004, a então editora-chefe deste jornal, Eloísa Nascimento, me deu a chance de escrever sobre cinema neste espaço. Hoje se completam 10 anos da parceria, e agora agradeço ao Ângelo Ananias, atual diretor, pela continuidade, e, claro, a vocês, os leitores. Obrigado.