E as cinebiografias? (publicado originalmente em 10/12/2013)
Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram censurados durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Hoje, a inversão dos papéis surpreende não pelo gosto duvidoso, mas pelo ineditismo. Vamos supor que Charles Chaplin defendesse a censura após ser massacrado pelo macartismo nos Estados Unidos. Delator ou não, ficaríamos abalados. Ou se Fritz Lang, que fugiu da Alemanha depois que Hitler assumiu o poder, décadas mais tarde apoiasse um candidato de qualquer partido Neo-Nazista por aí. É precisamente este cubo mágico que tentamos resolver e entender. O que na vida de Chico, Caetano e Gil seria tão absurdo assim para eles impedirem biografias não autorizadas? Eles fumaram maconha, usaram drogas, agrediram alguém sem razão, roubaram, mataram, sequestraram, estupraram? Quem sabe... A incógnita nasce pelo que se chama de ‘ameaça de mentira’. É quando uma pessoa diz: ‘Sei algo sobre você, mas não te conto.’ Então, a ‘vítima’ fica em estado de pavor e teme que a qualquer momento o ‘falante’ abra a boca.
É uma das jogadas mais infantis e mimadas dos últimos tempos. Roberto Carlos quer mandar. Chico Buarque quer pisar. Caetano Veloso quer provocar. Gilberto Gil quer piorar. Trata-se do resultado de anos de paparico da imprensa, público, admiradores e críticos. Nada que desmereça o trabalho deles, gostem ou não. Eu, por exemplo, simpatizo com as letras de Chico e Gil. Não entendo as de Caetano e desprezo as de Roberto. Aliás, o autor de ‘Detalhes’ é o mais indicado a responder sobre o que é ser altamente gostado por uma estação que semanas atrás admitiu de forma pública que apoiou o golpe militar de 1964. Na faculdade, vi o professor Mário Sérgio Moraes dizer certa vez que a ditadura pensava em alguém para representá-la e o nome de RC veio de pronto. Manso, ignorante e alheio às situações políticas de então – e às atuais também – o ‘Rei’ foi peça chave para difundir o regime autoritário, ao lado de Silvio Santos e da dupla Don & Ravel.
Roberto deveria lavar a boca com sabão quando diz que ‘é preciso conversar’, ‘isto tem de ser discutido’ ou ‘é preciso entrar num acordo’, como fez na entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo. Proibir o que quer que seja, desde livros, músicas e filmes, até depoimentos, entrevistas e opiniões, é pura censura, recriminação e autoritarismo. O cineasta Glauber Rocha morreu aos 42 anos, em 1981, totalmente desgastado com a opinião publica porque anos antes havia elogiado, num mesmo artigo, Golbery e Darcy Ribeiro. A ambos chamou de ‘gênios da raça’ e que ‘somente através deles o Brasil pode seguir um caminho melhor’. Anos depois, no documentário ‘Glauber Rocha: Labirintos do Brasil’ (2004), de Silvio Tendler, o caso foi explicado: ele queria aproximar Darcy e Golbery, para que o primeiro fizesse a cabeça do segundo e, assim dirigisse o país a um socialismo utópico e revolucionário. Glauber era louco no primeiro instante, mas, como disse o amigo Paulo Gil Soares no filme, ‘suas ideias eram orgânicas, de boa digestão’. O cineasta morreu ‘apanhando’ e renasceu idolatrado. Um Jesus Cristo popstar.
E não somente nos livros isto acontece. Quem não se lembra da Xuxa juntando os VHS de ‘Amor, Estranho Amor’ (1982) pelo Brasil afora? O filme pornô-romântico em que ela contracena, nua, com um garoto de 14 anos, não é mais vendido. Renegar o passado é típico de artistas inseguros, ou com vergonha do que fizeram. Como fazer uma biografia de Garrincha sem citar Elza Soares? Ou de Roberto Carlos sem citar suas ex-esposas, e o filho? A de Pelé, sem falar da filha que ele rejeitou e de suas ligações escuras com Ricardo Teixeira e João Havelange? Juca Kfouri desistiu de escrever a biografia do ‘Atleta do Século’ quando Pelé impediu que citasse estes cartolas da CBF e Fifa. Enfim, faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Lema dos covardes, dos burros. Vivemos tempos perigosos. O ‘politicamente correto’ faz-nos correr riscos muito tênues. Fiquemos de olho.