‘Edifício Master’ (publicado originalmente em 19/11/2013)
Eduardo Coutinho é o melhor documentarista do Brasil. Inquestionável. Ponto. Após montar a obra-prima ‘Cabra Marcado para Morrer’ (1984), a carreira pedia estoques de boas histórias. Todo o trabalho do cineasta, a partir de então, foi regado de aplausos. Coutinho tem o dom de farejar boas histórias, achar personagens fortes e obter desta conta momentos de regularidade ímpar. Claro, não é sozinho. Uma equipe o acompanha e o auxilia nas apurações. ‘Edifício Master’ (2002) é dessas jóias em vídeo. A ideia é a mais simples possível: o prédio que dá título ao filme fica em Copacabana, perto da praia. Tem 12 pisos e 23 apartamentos conjugados por andar (276 no total). Cerca de 500 pessoas moram ali e estas informações são passadas pelo diretor logo nos primeiros minutos. E então iniciam os depoimentos. A trupe de Coutinho, ele junto, alugou um apartamento do Master e por lá residiu durante quase um mês. Bateram de porta em porta em busca de biografias, passagens, causos, brigas e reconciliações. Conseguiram. ‘Edifício Master’ é, pode-se afirmar, um apanhado do Brasil, de cada canto da mais interiorana cidade. Foram 37 testemunhos de vida, e um mais íntimo que o outro. É aí que entra a mágica de E. Coutinho. Sentado à frente dos entrevistados, suga a clandestinidade deles.
O desfile tem a desistência da mulher ao se suicidar, endividada, por um motivo bem simples – ‘Não quis morrer e ficar devendo pra C&A e Ponto Frio’ –, o casal que briga, se xinga, mas se ama – ‘Nós não prestamos, mas nos amamos’ –, a sociofóbica que dividia o apartamento com três gatos (é a personagem mais emblemática da fita, creio) e não olhava para Coutinho porque não tinha ‘coragem’ e ‘confiança’ (‘As ruas são cheias de gente, e isso me incomoda muito’), o dublê de atores que teve de parar com a profissão por ficar surdo num acidente em uma gravação, a prostituta de 20 anos com a filha de seis (sim, engravidou aos 14, ‘por culpa de meu pai, que me prendia em casa’) que gastou sua primeira grana – 150 reais – de programa com a filha comendo no McDonald’s, o casal homossexual feminino que mora com a mãe de uma delas, o aspirante a cover de Frank Sinatra (diariamente ‘My Way’ era posto em sua vitrola, no volume máximo, pra que os vizinhos ouvissem), a jovem que vai se casar com um americano e sonha em mudar de vida, o homem desempregado, que ‘faz uns bicos’ de contador, conta que os colegas o consideram ‘rico’ porque ele mora em Copacabana, a espanhola que insiste em dizer que ‘a pobreza não existe’, enfim, muitos outros desta imensa teia dos sentimentos...
Mas qual é o ingrediente primordial para o brilho de ‘Edifício Master’? É a convivência com a câmera coutiniana. O diretor capta com avidez a alma de cada entrevistado. Compartilha o seu dia e tem com ele conversas francas, sem rodeios. Quando precisa fazer uma pergunta mais áspera, a faz e o personagem responde com a sinceridade do amigo, como se fosse de longa data. ‘Porque você não olha pra mim?’, indaga Coutinho à moça sociofóbica. ‘Você mentiu alguma vez’, questiona o cineasta à prostituta que diz adorar mentir e às vezes até mesmo acreditar nas suas lorotas. São closes onde os rostos das pessoas são mostrados como verdadeiramente são. Nos filmes de Coutinho não há trilhas sonoras, efeitos especiais e mistérios. Tudo é às claras, inclusive alguns instantes de bastidor. Ouve-se somente o ruído, o barulho das palavras, os sons do cotidiano, como portas batendo, os saltos dos sapatos etc. Somos meros voyeurs do dia a dia do Master, inclusive o do síndico, lá desde 1997. E ele confessa ir ‘do Piaget ao Pinochet’ pra administrar o local. O jornal ‘O Globo’ imitou ‘Cabra Marcado para Morrer’ (iniciado em 1964, paralisado pela ditadura e retornado em 1980, 1981, completado em 1984) e 10 anos depois das filmagens de ‘Edifício Master’ voltou ao lugar, procurou os protagonistas.
Uns separaram, a maioria se mudou, o síndico segue na função. Não importa. O registro já é a eternização da história. ‘Edifício Master’ é outra estrela no currículo de Coutinho e nos faz refletir e digerir o cinema sem-sal que está aí, cheio de ‘não me toques’. Temos de vomitá-lo. E salve Coutinho!