Tinguera e a cultura (publicado originalmente em 29/10/2013)
No fim do ano passado entrevistei Edna Cassal para a TV Câmara Jacareí. Ela estava às voltas com a finalização do documentário sobre Justino Oliveira, o Tinguera, figura conhecida na cidade, de um talento arruaceiro e debochado. Edna assina esta direção junto com Humberto Capucci e Marcos Alem. ‘Justino, o Ribeirinho de Jacareí’ (2013) mistura animação às entrevistas e imagens de arquivo e o resultado é tocante. Lembro pouco de Tinguera. Via-o em raras vezes numa praça onde entoava o violão, ou viola, à toda. Sempre o mesmo figurino: chapéu, paletó, camisa, a muleta. Sim, finalmente é desvendado o mistério (se é que havia algum) acerca do acidente que lhe tirou a perna esquerda. Os depoimentos de amigos, parentes e admiradores contam numa linha tênue e organizada a história de um homem coberto pelo seu tempo. A fotografia do média-metragem é bem feita e a trilha sonora de Jaime Alem dedilha os minutos de ‘Justino...’ com os sons de mato, campo, terra, café e bolo de fubá.
A fita estreou há alguns dias e ainda está em processo de estreia em salas e escolas da cidade. Hoje, 29, estará no auditório da Secretaria de Educação, às 19h. Daqui um mês, em 29 de novembro, será ao ar livre, às 19h30, no Pátio dos Trilhos. Já o desenho ‘Tinguera, o Violeiro Errante’, terá duas apresentações: depois de amanhã, 31 de outubro, às 19h, na Sala Mário Lago. Até dia 1º de dezembro no Pátio dos Trilhos também estará a exposição ‘Seu Justino’, com fotos, matérias, desenhos. Enfim, 2013, ano do 90º aniversário do violeiro e de 5 anos da morte, Jacareí comemora, celebra ‘Tinguera’.
Justino era de Santa Branca, de 29 de maio de 1923. Veio trabalhar na estrada de ferro aqui em Jacareí, e com a morte da mãe ficou sozinho (aliás, um fato na vida da mãe é assustador: perdeu vários filhos e Justino foi o único sobrevivente). E influenciado pela música do pai, o menino Justino, ainda sem ser Tinguera, se apaixonou pelas cordas do violão e herdou o gosto. Então Jacareí passou a ser sua sede de shows. Nos bancos das praças, o auditório se formava para vê-lo entoar melodias de outrora, ou inventadas por ele. Seu olhar fixo no instrumento e barba branca por fazer eram marcas registradas de um personagem que se transformou em folclore municipal menos pelas suas canções e mais por xingar pedestres indiscretos que teimavam em chamá-lo por seu apelido: Tinguera. E eram os variados palavrões, pedras arremessadas, bengala jogada longe etc. Os pivetes eram os principais autores das bocas abertas. Atiçavam o âmago do músico, o qual respondia sem pensar. Justino era fã da polícia, dos ‘guardas’, ameaçava os seus ‘inimigos’: ‘Eu vou chamar o delegado! Vocês vão ver só!’
Edna, Humberto e Marcos conseguiram resgatar imagens de Tinguera numa apresentação na praça Conde Frontin em 1983, outra de 1987, num programa da TV Cultura, onde Justino oferece ao apresentador, Junio Lerner (o que fez a famosa entrevista com Clarice Lispector, dez anos antes), um dos chaveirinhos em forma de viola; e 1996, na escola Professora Olívia do Amaral Santos Cannetieri, na festa da escola... Ele usava uma espécie de distintivo por baixo da lapela do paletó e se aposentou por invalidez depois de trabalhar como vigia da loja de móveis do empresário Arno Roissmann, nos anos 1970. Comia diariamente pão e água. Café e macarrão (o seu prato predileto) eram benfeitorias cedidas por vizinhos e amigos, que levavam alimentos à casa onde morava, no bairro Campo Grande. Às vezes era necessário dar-lhe banho, fazer-lhe a barba e cortar-lhe os cabelos, claro, à sua rebeldia infinita. No começo deste século rumou ao asilo Amor e Caridade, de Lúcia Fortes, viúva do vereador Egídio Coimbra. Justino ‘Tinguera’ morreu um mês antes de completar 85 anos, 29 de abril de 2008.
Contar história do município por meio de filme, como fez o trio de diretores, livros, como tão bem faz o ex-prefeito e ex-vereador Benedicto Sérgio Lencioni, ou nas músicas, como o casal Jaime Alem e Nair Cândia entoa aos quatro cantos do Brasil, é imprescindível. Preservar esta cultura é fazer Jacareí sobreviver na nossa memória. Viva Tinguera! E que ele não nos jogue, lá de cima, sua muleta.