‘Sem metafísica’ (publicado originalmente em 22/10/2013)
Alguns meses atrás ganhei o livro ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, de José Saramago. Sem perder o tempo dos sossegados, comecei a lê-lo no mesmo dia e acabei-o em pouco tempo. A história possui o poder de atenção esquisito, como se o autor quisesse barganhar com o leitor. J. Saramago nos infiltra reflexões tardias e tateantes. Teorias de crença, autoestima e piedade compõem a obra, lançada há 18 anos. Deparamo-nos com provocações e inseguranças. ‘Ele sabia que estava em frente ao espelho e se apavorou: o objeto ali podia vê-lo, ele não’, é a frase das mais angustiantes do livro e nos chuta para o desafio sobre sermos invariavelmente cheios de si, mas com um simples clique, epidemia de cegueira branca, o mar de leite frente aos olhos, nos tornamos vulneráveis como as poeiras do chão– qualquer vento nos destrói. Outra fincada: ‘É desta massa que nós somos feitos, metade indiferença e metade ruindade.’ Até onde podemos nos aprouver? Rompem-se as estratégias do cotidiano com a cegueira.
Demorou para eu assistir ao filme baseado no livro. Vi-o cerca de dez dias atrás somente. E a decepção, claro, clareou. Lançado em 2008, o homônimo me soou como uma lição onde o aluno não está preparado àquilo e faz porque é obrigado. Fernando Meirelles (‘Cidade de Deus’ – 2002) estava longe de ter sido forçado a rodar ‘Ensaio Sobre a Cegueira’. Talvez o tenha feito com preocupação de agradar ao escritor. A inquietação excessiva pode ser. O resultado foi um longa-metragem totalmente frio e distante, mecânico e inodoro, fútil e descartável. Julianne Moore (de ‘As Horas’ – 2002), Mark Ruffalo (‘Ilha do Medo’ –2010), Alice Braga (‘Eu Sou a Lenda’ – 07) e Gael Garcia Bernal (‘No’ – 12) estão no elenco. Explico aos leitores que os personagens não têm nome e a ação se passa num lugar desconhecido (as filmagens ocorreram no Brasil, Japão e Canadá) e é atemporal. A pitada de ânimo é o ingrediente faltante à aventura. Fernando Meirelles patinou como cego e não enxergou onde errou.
O enredo é a cegueira. O mal cai na cidade e todos os habitantes são contaminados. Porém, a diferença simbólica: nos olhos, ao invés do pano negro, a parede branca. De início, as vítimas creem na solução rápida, afinal, veem branco e não preto. O primeiro a cegar é o motorista, em frente a um farol. Depois, o oftalmologista que o atendeu. A esposa do motorista, o ladrão de seu carro, os outros pacientes do consultório etc. Como a fileira de dominós, a doença se espalha. A única sã é a esposa do médico. Ao serem levados para a quarentena, ela (Moore) vai junto e finge não ver. O ambiente está decrépito. Há racionamento de comida, não há banheiros, as camas são muito próximas e aos poucos os vilões surgem. Na situação surgem paixões, ansiedades, desconfianças, indagações. A dependência é o pior dos males e o mais surpreendente deles. J. Saramago aborda afrontando-nos. A personagem de Moore está a um passo de se entregar, claudicante, exasperada, terminada. Ninguém a reconhece.
Mário Lago disse certa vez que a TV é fascista, ‘não há meio termo’. Com o cinema é igual. Ele se referia a adaptações da literatura. Posto na tela, é aquilo e fim de papo. A imaginação é deixada de lado. Li e vi ‘Lolita’, de Vladimir Nabocov. O livro, de 1955, os filmes (foram dois), de 1962 e 97. Creio ser o caso único de tanto as páginas como o roteiro serem esplêndidos em sua forma. As fitas foram dirigidas respectivamente por Stanley Kubrick e Adrian Lyne e possuem beleza própria, sensualidade inédita e riqueza de atuações (James Mason e Peter Sellers em 62 e Jeremy Irons e Dominique Swain em 97). Não é como ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ de Meirelles. Ali tudo parece ter se contaminado e está apagado. É como o ‘Esteves sem metafísica’, como escreveu Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) na ‘Tabacaria’; ou seja, falta-lhe algo de comprometedor, o elo da emoção com a tensão. Chocam-se eles.
No documentário ‘José e Pilar’ (2010), que mostra os últimos três anos de vida do português, após assistir à fita (numa cena onde Meirelles está nervosíssimo, aguardando a aprovação ou não de Saramago), este diz, emocionado, pra alívio do brasileiro: ‘Ganhamos o dia.’ Saramago foi bonzinho.