O ‘m’ minúsculo (publicado originalmente em 8/10/2013)

Na primeira cena de ‘Jobs’ (2013) – em cartaz no Brasil desde o fim de agosto – vemos o ator Ashton Kutcher paramentado como o fundador da Apple em sua fase terminal (Jobs morreu em 5 de outubro de 2011, aos 56 anos, de câncer no pâncreas). A cena se refere ao lançamento do Ipod. O rei da maçã mordida é ovacionado ao apresentar o novo brinquedinho. A câmera praticamente focaliza o rosto por segundos, quase nada. A maquiagem de Kutcher é fraca. Percebe-se a barba mal feita e seus cabelos pintados. Ponto. Desde esta primeira sequência nota-se superioridade do ator em relação ao personagem. O ex-marido de Demi Moore está sobreposto a Steve Jobs. Isto não é bom. O filme todo a partir desta constatação está prejudicado, inclusive na direção ‘à vontade’ de Joshua Michael Stern.

O longa já gerou controvérsias e desavenças. Steve Wozniak, cofundador da Apple, disse não corresponder à realidade a maior parte da trama. Nela, pinta-se o protagonista como egoísta, muito mal educado, possessivo, manipulador e aproveitador. Calma. Tudo isto em doses mínimas. Vendo a fita, não é tanto assim. Jobs (tinha trabalho até no nome) às vezes é inocente, ingênuo e solidário. As disparidades de personalidade, ditas por Wozniak como heresias, na verdade fazem parte do normal de qualquer um. Mas ele levou às últimas consequências. Tanto que trabalha como consultor noutro filme sobre Jobs roteirizado por Aaron Sorkin, de ‘A Rede Social’ (2010), baseado na biografia escrita por Walter Isaacson. Jobs esticado como elástico frouxo. Pode arrebentar prum dos lados da câmera.

Sobre isto, furtar-se a comparar ‘Jobs’ a ‘A Rede Social’ é impossível, principalmente devido a atuação dos dois atores centrais, Kutcher e Jesse Eisenberg, cada qual a encarnar o titã da tecnologia (o segundo dá vida a Mark Zuckerberg, criador do Facebook). Kutcher finge andar como o seu papel manda. Fez até a dieta igual à do empresário, de frutas, e passou mal após o término das filmagens. E o convencimento do ator fica próximo do chão. Aos 35 anos, é cru em bons projetos –está atualmente na série de TV ‘Two and a Half Men’ e a maior parte de suas realizações é deste naipe. Já J. Eisenberg transborda tensão em seu Zuckerberg e no ritmo alucinado das falas ficamos certo de que ali naquela tela está realmente a pessoa responsável pelo ‘livro dos rostos’. Temos ódio e pena ao mesmo tempo.

‘Jobs’ mostra a trajetória de Steve desde a época em que era relaxado nos estudos, até chegar ao ápice da carreira, em meados da década passada. Não se pode dizer que ele aproveitou bastante o seu sucesso. Na película estão ainda os atores Dermont Mulroney (o genro de Jack Nicholson em ‘As Confissões de Schmidt’, 2002), como Mike Markkula, sócio de Jobs, e Josh Gad na pele de Wozniak. Nenhum dos dois supera Kutcher na interpretação. Esta qualidade duvidosa do enredo em si, e 100% dos atores, mais o diretor, acompanhado pelo roteirista estreante Matt Whiteley, estarem preparados para um trabalho ruim, pode estar vinculado ao que me soa como uma feitura às pressas do longa. É a atitude semelhante à tomada pela editora Globo ao lançar a biografia de Roberto Marinho só meses após a morte dele, com Pedro Bial como autor (!). O objetivo, claro: evitar que outrem se aproveitem da imagem e causem enjôos com livros / filmes que denigram a imagem do personagem abordado. E vejam: no caso de ‘Jobs’ ocorre o oposto, porque este trata o empresário da internet como ‘o’ maldito.

Entretanto, o que mais aborrece nas mais de duas horas de exibição não é isto. O pior é saber que ao assistir ao filme estamos nos deparando com falsos mitos criados com aspiração de poder. Os mitos, aqui, são com ‘m’ minúsculo. Aprecio cinebiografias. É das partes da sétima arte que mais me anima em ver. Cito, por exemplo, ‘Gandhi’ (1982), ‘As Horas’ (2002, sobre Virginia Woolf). Os atores Ben Kingsley e Nicole Kidman deram banho e se consagraram, merecidamente. O ‘Pollock’ (2000) de Ed Harris também rendeu elogios. Porém, a de Kutcher como ‘Jobs’ pode ser, indico, completamente descartada. Até mesmo ‘Hoffa’ (1992), de Nicholson, é melhor. Por aí você pode ter a noção de ‘Jobs’.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 09/10/2013
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