O santo de Eldorado (publicado originalmente em 17/9/2013)
Por estes dias banhei-me com Glauber Rocha. Calma. Nada malicioso. Quero dizer ‘banhar’ e ter o sentido de mergulhar, aprofundar, empapar, deliciar e saber. Assisti a ‘Terra em Transe’ (1967), ‘Câncer’ (1972, tema desta coluna semanas atrás), ‘Cabeças Cortadas’ (1970), ‘Barravento’ (1962), ‘O Pátio’ (1959), ‘Di Cavalcanti’ (1976), ‘Maranhão 66’ (1966), ‘Amazonas, Amazonas’ (1965), e além do documentário ‘Glauber Rocha: Labirinto do Brasil’ (2003), o qual já devo ter visto umas vinte vezes. De vez em muito, estafado com a qualidade rala do cinema, busco a minha própria inspiração. Isto gira em torno de Glauber, Woody Allen, Hitchcock, Charles Chaplin, Jack Nicholson, Buster Keaton.
Entender o seu modo de produção é como tentar decifrar os pergaminhos do Egito ou querer contar os passos de Jesus na Bíblia. O cineasta era caótico, fazia questão de por suas alucinações nos sets e nos roteiros, ansiava mostrar na tela imagens e sons e poucas palavras, pois entendia ser esta a função número um da sétima arte. Em ‘Terra em Transe’, por exemplo, fiquei com a sensação de que ele escreveu poemas e montou a fita em cima dos versos. O longa, aliás, é de uma fineza crítica de se ajoelhar o mais profundo credor político. Nos demais, sobra bahianidade nos gostos e até nas salivas.
Glauber Rocha venerava a bagunça, no bom sentido, e batalhava para sermos melhores e não dependermos do renomado ‘imperialismo norteamericano’. Quando faz o discurso afobado, cheio de revolta, no Festival de Veneza de 1980, vomitando crítica ao vencedor Louis Malle, é para o Brasil e, por conseguinte, sua gente, compreender que nossa independência já tinha atingido graus máximos e para largarmos o estrangeiro no canto. ‘Os críticos que aprovaram isso estão assinando a sentença de morte cultural!’, berrava o criador de ‘Antônio das Mortes’. Não era para menos. Glauber defendia ali ‘A Idade da Terra’ (1980), o ponto final de uma carreira marcada pela precocidade e a genialidade.
Ao ver suas obras noto como corria. Tenho a certeza de que sentia que partiria cedo e por isto desejava se impor de qualquer maneira. O único habitante de Eldorado, o país de ‘Terra em Transe’ e ‘Cabeças Cortadas’ era ele mesmo e seus pensamentos e ideias arrebatadores. Glauber governava, as leis eram de sua autoria e naquele lugar mandava matar, prender e soltar. Nesse amálgama, tornou o cinema brasileiro, o verde e amarelo, um cinema de patamar superior. É o ‘Cinema Novo’ que vemos, sabemos até hoje, brilhantemente apresentado por Joaquim Pedro de Andrade no média-metragem rodado na efervescência da hora, do momento. Que bom este partilhar de Andrade conosco. Quando capta as cenas do média, eternizam-se na película imagens para a história. Além de Glauber, Arnaldo Jabor, Nelson Pereira dos Santos, Hélio Oiticica, e tantos outros nomes que compõem este panteão.
Ainda preciso ver ‘A Idade da Terra’, ‘O Dragão da Maldade Contra Santo Guerreiro’ (1968), ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964), ‘O Leão de Sete Cabeças’ (1971) e ‘As Armas e o Povo’ (1974), além de ‘Claro’ (1975) e alguns trabalhos menos conhecidos e difíceis de encontrar, como ‘A História do Brasil’ (1973), documentário de quase três horas de duração. Aí terei completado toda a sua obra.
A. Jabor o definia como ‘homem sem claquete’ e ele estava certo. Semana passada vasculhei o arquivo da revista ‘Veja’, de 1981, e pude ler a reportagem – ótima – acerca do velório, sepultamento e vida de Glauber. As linhas se debruçaram em avaliar o fracasso de bilheteria de seu último suspiro na telona – ‘A Idade da Terra’. Uns acharam ‘chato’, outros ‘entraram na onda’. Mas há de ser feito os reparos necessários. Resumir a trajetória glauberiana nas mínimas opiniões é um crime lesa-pátria.
Glauber Rocha era um estupendo articulista, escrevia maravilhosamente, amava Heitor Villa-Lobos. Mesmo em projetos menores, como ‘Amazonas, Amazonas’ e ‘Maranhão 66’, o cineasta dava o jeito de encaixar a característica principal: música tupiniquim e barulho. Um dia antes de morrer, era odiado pela esquerda e direita. Na noite seguinte à morte, a chave foi trocada. Tornou-se o santo.