‘Feliz serve pra quê?’ (publicado originalmente em 10/9/2013)
Quase todo mundo, ao se referir a algum lado e/ou caminhos de Clarice Lispector, cita aquela entrevista gravada em 1º de fevereiro de 1977 na TV Cultura, para o programa ‘Panorama Especial’, e cujo apresentador era o jornalista Júlio Lerner. É questão sine qua non. Faz soar a obrigatoriedade e a contemplação que a própria escritora repudiava. A certa altura da conversa – estava com câncer e não sabia, se sentia cansada, ‘morta’ em suas palavras, até por estar no hiato entre uma produção de livro e outra – Clarice diz, sobre ter o rótulo de escritora famosa: ‘Tudo que digo, a maior bobagem, é considerado como uma coisa linda ou uma coisa boba.’ Estava certa. Eu mesmo, em 2004, aqui neste espaço, dediquei a coluna inteira a falar acerca daquela conversa. Hoje abordo ‘A Hora da Estrela’, o filme de 1985 dirigido por Suzana Amaral e sobre o qual Clarice fala no fim da citada atração. Foi seu derradeiro trabalho. Lançado em 1977, a escritora morreria meses depois, em dezembro, aos 57 anos.
‘A Hora da Estrela’, para início de papo, é uma baita produção. Marcélia Cartaxo é Macabéa, a protagonista, ‘nortista’ como a mesma se define, semi-alfabetizada, aculturada e bastante ingênua. Alagoana, vem ao Rio de Janeiro tentar a vida e acaba como datilógrafa numa repartição. Ganha tão pouco que seu salário só dá pra ela ir à lanchonete pedir Coca-Cola e cachorro-quente. Não tem nela a higiene cobrada dos seres humanos. Mora na pensão pra moças, onde estão três ou quatro garotas. Escuta incessantemente a Rádio Relógio, onde aprende banalidades, lições inúteis. A certo momento conhece Olímpico (José Dumont, também ótimo) e namoram timidamente. A reviravolta se dá por conta de Glória (Tamara Taxman), a colega de trabalho de Macabéa. Vive aos pulos de parceiros e, de revolta grande, resolve pedir socorro à cartomante Carlota (Fernanda Montenegro). Então Glória se relaciona com Olímpico e aconselha à amiga a mesma ajuda: as cartas. O fim de Macabéa não é tanto diferente de seu cotidiano: ostracismo relacionado à morte, ao desprezo. Ninguém a conhece, enfim.
Suzana Amaral estreou tarde no cinema. Tinha 53 anos quando ‘A Hora da Estrela’ entrou na sala de cinema. Estudou nos Estados Unidos. Lá leu toda a obra de Clarice. Resolveu adaptar à telona a última. Deu banho. Marcélia é impecável e, igual Suzana, debutava em frente às câmeras. A direção a privilegiou muito. A atriz, tal como a personagem, estava crua, pura, e isto a ajudou demais. São as páginas do roteiro – rico no texto, cheio de provocações – a base maior de sustentação tanto para ela como a Dumont. Marcélia não esconde no rosto a candura de Macabéa e interiormente a sua revolta e vontade em querer sair do lugar onde está, ainda que ela saiba ser praticamente impossível. Volto a tal entrevista. Clarice classificou de ‘inocência pisada’ e ‘miséria anônima’ a trajetória de Macabéa. E na verdade estes termos da escritora se referem a nós e a incompreensão sobre a nossa existência por assim dizer. Diálogos como ‘você é feliz?’ / ‘feliz serve pra quê?’, ‘você não tem cultura’ / ‘o que é ter cultura?’ fazem de ‘A Hora da Estrela’ um marco no cinema nacional, numa época em que este setor estava, no Brasil, completamente abalroado. Marcélia Cartaxo, por exemplo, ganhou muitos prêmios.
Tanto ‘A Hora da Estrela’ como sua autora são, a primeira vista, difíceis de entender ou até de lidar. O livro tem menos de cem páginas, mas é duma complexidade ímpar. A história é narrada por Rodrigo, talvez o observador secreto de Macabéa. Todavia, nada quer com ela e ele próprio a ignora e maltrata nas linhas. Suzana não insere este personagem masculino em sua fita, porém a crueldade no cotidiano reside ali, sem dúvidas. Vemos Macabéa usando um pinico e simultaneamente engolindo a coxa de frango que sobrou da marmita. A anti-heroína é morta de fome e representa o contrário dos feitos de Clarice da carreira. A escritora normalmente se fixava nas classes média e alta, discutia com seus ‘eus’. O dia a dia dela era botado no papel, sem enfeite, na bucha, doesse a quem doesse. ‘A Hora da Estrela’ capta o lapso disto, está mais fincado na nossa existência. Ou sub-existência de cada um.