Vestido de sombras (publicado originalmente na revista Uniodonto de julho)
Quem nunca viu qualquer filme alemão da primeira metade do século passado não sabe, em hipótese alguma, o que perde. A Alemanha foi o país sofrido naquele período por conta de desastres bélicos como as duas grandes guerras mundiais (1914-1918 / 1939-1945), homens como Adolf Hitler (1889-1945) e, até mesmo por conta disto, economias trôpegas e frágeis. Em nada se parece com a tal estupenda nação dos nossos dias. Liderada por Angela Markel e fiel ao lema 'comigo ninguém pode', o país de outrora, desculpe o trocadilho, era outro. Desempregos recordes, pessoas nas ruas varando de fome e bombas atrás de bombas devastando as terras e matando gente. A sétima arte estava ainda no começo, tinha vinte e poucos anos de vida, e já representava muito na Europa, principalmente. E a situação desgraçada dos germânicos tinha nas telonas o reflexo. A era do 'Expressionismo Alemão' fincou-se na toada. O cinema foi somente uma das peças atingidas. Os artistas impingiram também o movimento na pintura, artes plásticas e literatura. Tudo o que pudesse ser visto deveria retratar toda a miséria e a pilhéria causadas pelo Tratado de Versalhes (1919), no qual praticamente se viu forçada a entregar todo o seu território e patrimônio aos adversários políticos. Veio a resposta.
No cinema, fitas como 'O Gabinete do Doutor Caligari' (1919), 'O Golem' (1920), 'Metropolis' (1927), e, sobretudo, 'Nosferatu' (1922) se tornaram símbolo de uma época de horror, medo e perdas. Noto, por exemplo, a luz. É o ingrediente primordial pra entender o 'Expressionismo Alemão'. São as escuridões, as penumbras, as réstias de quaisquer iluminações, os pontos-chave destes filmes citados. Parodio o título da peça de Ariano Suassuna, e da Bíblia, e encaro esta fase nublada não como 'Uma Mulher Vestida de Sol', mas como 'Um Cinema Vestido de Sombras'. Porém, a luz vem acompanhada de mais variáveis. A maquiagem, o posionamento das câmeras e cenários estão incluídos no pacote. Pego 'O Gabinete...' e 'Nosferatu' para detalhar. O que a produção pôde modificar, modificou. Portas, mesas, estradas, paredes etc. Enfim, está ali a visão de mundo assustadora, ingênua e até certo ponto macabra. Quando vi pela primeira vez algumas cenas do período pensei serem histórias de terror por terem este teor fúnebre. Os olhos dos atores expressam força, surpresa e invariavelmente arregalam-se. 'M: O Vampiro de Dusseldorf' (1931) é outro exemplo, com Peter Lorre em seu melhor momento da carreira. Quem não se arrepia com os assovios do protagonista, aqueles seus olhos esbugalhados?
Dou crédito, claro, aos nomes surgidos com o cinema expressionista. Ícones como Fritz Lang (1890-1976), Friedrich Murnau (1888-1931), Robert Wiene (1873-1938), Paul Wegener (1874-1948) e Paul Leni (1885-1929) marcaram gerações. Bob Kane, criador do super-herói Batman, se inspirou no protagonista de 'O Homem que Ri' (1927), filme de Leni, para desenhar as feições do Coringa, o arquiinimigo do Homem-Morcego, nos anos 30. Ponho o 'Expressionismo Alemão' no pódio, ao lado da 'Nouvelle Vague' francesa, do 'Realismo Italiano' e do 'Cinema Novo' brasileiro como os principais instantes da sétima arte desde a invenção desta, no fim de 1895. Tenho uma queda pela Alemanha e ela não é de hoje. Por conta das agruras, pessimismos, sempre me chamou a atenção. Evidentemente os anos de calamidade foram ruins ao país (duraram cerca de 40 anos), todavia serviram de lição. Uma lição fervorosa, diga-se. A arte agradeceu. Nada teríamos dela se não fossem as tragédias. Personagens um tanto bizarros, distorções da imagens e as recriações urbanas rechearam lendas. É bom registrar que alguns diretores alemães migraram aos Estados Unidos devido às guerras e fizeram em Hollywood o seu cinema, o germânico. Fritz Lang foi um deles, após ser convidado por Hitler, e recusar, a rodar odes alemãs.