Câncer (publicado originalmente em 27/8/2013)

Um dos filmes de Glauber Rocha dos menos conhecidos é ‘Câncer’ (1972). Quando se fala no diretor baiano logo nossos miolos buscam ‘Terra em Transe’ (1967), ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1963) ou ‘O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro’ (1968). Uns poucos citam ‘Di-Glauber’, e neste caso é um documentário em curtametragem de 1976, ou ‘A Idade da Terra’ (1980, último filme dele), ‘Barravento’ (1962). ‘O Pátio’ (1959, primeiro lance de Glauber no cinema) e ‘Maranhão 66’, os curtas hoje cults, também são lembrados. No entanto, ‘Câncer’ praticamente inexiste. Tive a chance de vê-lo recentemente. Como semana passada marcou o 32º ano da morte do cineasta, escrevo sobre a fita. E carimbar o longa como experimental, inventivo e contra a corrente é claramente ‘chover no molhado’ da falta de inspiração. Todos os trabalhos glauberianos são assim... ‘Câncer’ segue, de fato, estas características, mas vai além. Mostra uma revolta embutida, sensações de impotência frente ao sistema imperativo do capitalismo e a falta de alta do ser humano. No elenco, intelectuais, não atores e atrizes, por assim dizer. Vemos Eduardo Coutinho, Ferreira Gullar, Zelito Viana, e os acostumados a atuar, como Antônio Pitanga, Odete Lara e Hugo Carvana. O trio sustenta as tramas e subtramas. O fio do roteiro é muita improvisação. São executadas ações acerca de sentimentos como a indiferença.

No primeiro momento temos Pitanga rodeado de dois, três companheiros num plano único. O seu personagem mendiga cidadania. Nota-se que esteve na cadeia, e agora implora aos amigos um emprego qualquer. Ele tem fome. Ao mesmo tempo em que estende a mão em busca de auxílio, sente a gozação dos ouvintes. O ator está impagável nesta interpretação. Então com 29 anos (as filmagens iniciaram em 1968 e só foi editado em 1972), temos dó dele. Instantaneamente, porém, sabemos de sua malandragem. Corta. Então nos deparamos com o mesmo Pitanga, na cena com Carvana. Ambos delinquentes, discutem o que fazer com um aparelho. ‘Nunca roubei nada de americano’, diz Pitanga. A dupla tem medo das consequências do gato e resolve vender o troço. Acham Zelito (não o Viana) e começamos a assistir à melhor sequência do drama. Glauber, sem aparecer (é bom ressaltar que todo o som do filme é o de ambiente), provoca o futuro comprador com a mesma frase: ‘Sua mãe pariu 40 filhos, doutor Zelito!’. E o instigado retruca: ‘Não enche!’ ou ‘Pariu 41!’. Simultaneamente, A. Pitanga espanca um coitado no local sem que Zelito e Carvana se aporrinhem (num determinado instante até Carvana bate um pouco no tal). Corta. A cena seguinte é a bela Odete Lara e Carvana em um debate sobre fidelidade e moralidade. Tudo sem script e com Glauber em seus cangotes, fungando direções.

Os primeiros minutos de ‘Câncer’ lembram ‘Di-Glauber’ (1976). É o próprio diretor citando os principais acontecimentos daquele fatídico 1968: fechamento do Congresso com AI-5, revoluções estudantis, torturas etc. O que nos surge diante dos olhos é um debate de sabidões, no Museu de Arte Moderna, e a voz de Glauber contrapondo tudo das palavras. Danuza Leão é uma das captadas pelas lentes. O cineasta chegou a palpitar: “‘Câncer’ é um filme particular, não vou enviá-lo a festivais, nem vou exibi-lo nos cinemas... Ou talvez o exiba, mas ainda não o terminei, falta fazer a montagem. No momento não estou interessado em fazê-lo porque meu prazer foi só filmá-lo e suponho que talvez o que esteja lá não tenha importância.” Precisamente por isto o longametragem ficou tanto tempo nos porões das telonas. Glauber o rodou para praticar, experimentar, arriscar, ver no que daria, como se diz por aí. Outro ponto muito curioso de ‘Câncer’ é o documentarista Eduardo Coutinho na pele dum manifestante cheio de panfletos. Interrogado por um ‘polícia’, tenta manobrar o arguidor com frases de inocência e despreparo. É engraçado. Glauber era o rei de instigar os colegas a fazer coisas sempre diferentes das acostumadas. Foi o caso aqui. ‘Câncer’ não pode ficar para escanteio. É dos melhores e inesquecíveis feitos do inventor do Cinema Novo. Que bom que ele finalizou, com 4 anos de trabalho.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 30/08/2013
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