Homera (publicado originalmente em 30/7/2013)
Gravetinho não gosta de espiar a dona em sua hora de trabalho. Vai por aí, solto, livre. Quer a vida. Aliás, a dona também. Na Europa aos dez anos de idade, viveu como aldeã. Saía pelos campos e engolia a liberdade em goles profundos. Numa mão, um pedaço de pão. Noutra, uma faquinha com a qual a menina cortava os obstáculos com a vontade de quem ganhou como prêmio a vida. Observou o comportamento dos moradores e o tratamento entre eles. Imaginou. Essa mania de fabular, percebe-se, tornou-se vício. Nélida, por instantes, vai ao século 12. É o período de força dos marianos, onde o nobre é a exaltação à mãe de Cristo. Então a sonhadora volta e está em meio aos pais e ao avô. Daniel é o nome do homem. Anagrama de Nélida. E ela fica sem palavras com a revelação. É difícil deixá-la sem palavras porque a garota quer isso para a eternidade. Ser escritora é o futuro. Ele se concretiza e o cão Gravetinho está ao lado dela, imortal da Academia Brasileira de Letras. Não ama vê-la criando.
Há dois documentários sobre Nélida Piñon: ‘Sensibilidade Feita Palavra’, feito à TV Senado, e ‘Mapa dos Afetos’. Sobre o segundo não comento, pois não o vi. O primeiro foi produzido, sobretudo, com depoimentos de membros da Academia e doutores em Letras. Estava no Youtube até a semana passada, mas foi retirado dias atrás. Nele, imortais do porte de Lêdo Ivo e Carlos Heitor Cony falam da moça obstinada e corajosa que se transformou na principal autora brasileira, referência em países como França e Espanha e a primeira presidente a ABL (1996-1997, no centenário da instituição). De sorriso cativante e olhos mínimos, esconde-se na escritora um ar medieval. Cada frase soa-nos como lições. Se pudéssemos captá-las simultaneamente teríamos um livro a cada depoimento, entrevista. A beleza de sua figura está no modo como nos cativa. Nélida tem carisma. Fato. Transmite-nos sempre a certeza de que cada vida é a peripécia diária. É a aprendiz de Homero. Poderia ser a nossa Homera.
A imortal estreou na literatura em 1961 com ‘Guia Mapa de Gabriel Arcanjo’. Dali em diante mais 20 obras pulariam de sua mente recheada de mistérios. O mais recente, ‘O Livro das Horas’, do ano passado, trata das memórias. O baú estava abarrotado e coube à autora colher os frutos, separar os pensamentos e pô-los no papel. Recordou-se de Clarice Lispector e também dos pais Lino e Olívia, espanhóis da Galícia. Em ‘Sensibilidade Feita Palavra’, Nélida declara: ‘Minha mãe me chamou certo dia e disse: ‘Você é muito inteligente, mas não fala bem.’ Aquilo me atingiu feito um soco.’ Assim, tal e qual aos provocados, a escritora se mexeu. Aprimorou-se. Não à toa, definiu-se como ‘discurseira’. A modéstia, ela pode muito bem disfarçá-la de ousadia. Nélida é formada em jornalismo e trabalhou em publicações. Experimentou sua eleição à Academia em 1989, após a morte de Aurélio Buarque de Holanda. Tomou posse, conduzida por Lêdo Ivo, no dia em que completou 53 anos, 3 de maio de 90.
Descobri Nélida recentemente. Um ano. Dois, no máximo. Não sabia de seus prêmios Jabuti e outras congratulações. Assim como Paulo Bomfim, o Príncipe dos Poetas, que somente na semana passada tive o primeiro contato. São as entrevistas que me chamam a conhecê-los. Uma vez que vi a autora de ‘A República dos Sonhos’ (1984) não teve mais volta. E esta amarra veio forte e será difícil, senão impossível, desatá-la. Em uma conversa com a jornalista Leda Nagle, Nélida explicou o modo de trabalho: pode escrever, sem parar, por oito, dez horas seguidas. As ideias chegam, batem à porta e a arrombam. Isto faz com que aquela menina campesina, Homera dos nossos tempos, despeje nos papéis, na tela do computador, as suas confissões e verdades. Criadora de riscos, mãe dos vocábulos, Nélida é completa, complexa. Entendê-la é desmistificá-la. Dividiu almoços e jantares com Lispector e Vargas Llosa. Está no rol das grandes personalidades. Longe, muito longe da efemeridade, o rótulo de imortal lhe caiu como luva. Devemos para ela. Nélida não nos cobra. Pelo contrário. Oferece mais.